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[CRÍTICA] [OUVIDORIA] Artistas, apurem os ouvidos: é hora da escuta

Foto: Humberto Araujo

Brasília, 21 de agosto de 2018.

Ouvidores e ouvidoras,

Da autocrítica, nasceu a performance Ouvidoria (RS), apresentada num percurso que começou no Teatro Nacional Cláudio Santoro*, passou pela Rodoviária do Plano e seguiu pela Esplanada dos Ministérios até a Praça dos Três Poderes. Autocrítica porque nós, que somos das artes, estamos sempre na prontidão da fala – temos muito a gritar para o mundo: nossas dores, nossa poética, nossa liberdade de expressão, a crise política e social. Mas quantas vezes estamos na prontidão da escuta? A performance de vocês abriu o Cena Contemporânea 2018 com essa provocação, unindo 30 artistas tutorados pela performer Luciana Paz.

Ao vê-los estendendo uma faixa sobre o concreto quente do Teatro Nacional com os dizeres “Estamos aqui para ouvi-los”, logo me veio a importância política de vocês estarem ali diante de um teatro histórico que comemora o absurdo de estar fechado há cinco anos. Em tempos de retrocessos sociais, a Cultura é a primeira a perder escopo nos orçamentos. Afinal, para os tubarões do poder, cultura não é compreendida como direito, nem como uma necessidade vital para a construção identitária e crítica da sociedade. Nesse quesito, é impossível calar para escutar. Nossos gritos não podem parar de entoar essa luta.

Adiante, ouvidores(as), a performance de vocês me lembrou o sentido etimológico da palavra Teatro, para o filósofo argentino Jorge Dubatti, em Teatro dos Mortos (2007). Segundo ele, as artes cênicas não são um lugar de contemplação, mas de convívio. A força de uma expectação é tão importante quanto a força de quem está em cena – são idas e vindas no processo de percepção e significação. E na rua, tudo é cena. Vocês são só mais um pedaço na paisagem incrível que é a vida. Ali, ao observar de forma privilegiada aquele acontecimento onde vocês se disponibilizavam à escuta de qualquer coisa dos transeuntes, fui fazendo alguns questionamentos diante da “poética do convite”**, que estava sendo proposta.

O trabalho é uma criação coletiva preparada durante quatro dias de oficina. No último, eis que vocês viveram contato com a rua e seu cotidiano. Mas, naquele momento, a urbes estava sendo regida sob uma nova veste para vocês. Na Rodoviária, os performers se dispuseram a ouvir as pessoas diante de vários totens com o convite: “Ouvidoria – estamos aqui para ouvir você”. Daí muitas histórias foram colhidas: um peruano que reclamava da sua saúde, um jovem surdo que disse que os(as) ouvidores(as) deveriam saber a Língua Brasileira de Sinais (Libras), uma moça que sonhava em ser artista e revelou sua frustração ao não saber que o Cena Contemporânea estava acontecendo, dentre outras tantas tramas reais. Uma rica experiência para quem realizou a obra cênica.

Como metodologia de processo criativo, a performance é um espaço para que os artistas se abram aos atravessamentos possíveis que o diálogo e a escuta da população podem permitir. É uma tentativa de potencialização de sua rede de afetos, como propõe Renato Ferracini, do grupo Lume (SP). Afeto não só como empatia e cuidado, mas principalmente como corpos em interação com outros corpos. A questão que me veio foi: o que se faz com todo esse rico material colhido? Qual destino dar a essas histórias ouvidas? A performance é pensada para reverberar no público ou é, de fato, focada na aprendizagem dos próprios artistas?

Luciana me contou que o objetivo da performance não é terapêutico à população, apesar de eu ter percebido a necessidade que muitos transeuntes tinham de serem escutados. Para além disso, o trabalho me parece não ultrapassar em muito o aspecto metodológico de exercício que objetiva uma descoberta criativa para vocês, ouvidores e ouvidoras. Ao mesmo tempo em que vocês se dispõem a ampliar seus ouvidos para livrarem-se do egóico lugar de palanque que muitas vezes a arte carrega, percebi que a obra tem um objetivo focado na formação de quem a realiza e não no próprio público. E não há problema nisso, se essa for uma escolha, porém me parece gerar contradições.

Conversemos, também estou disposto a ouvi-los e aprender mais.

Cordialmente,

Danilo.

*Claudio Santoro (1919-1989) foi um maestro, natural de Manaus, responsável por fundar a orquestra de Brasília. O teatro foi fundado em 1958, mas a partir de 1989 passou a chamar-se “Teatro Nacional Cláudio Santoro”.

** colhi o termo da artista Janaína Moraes, durante a performance. A pesquisadora trabalha a “poética do convite” em sua pesquisa de mestrado.


Danilo Castro é ator, graduado em Artes Cênicas (IFCE); jornalista, graduado em Comunicação (UFC) e mestre em Artes cênicas (UnB).

 

 

Publicado em 22 de agosto de 2018