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[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] AFINAÇÃO I

Foto: Rômulo Juracy
Foto: Rômulo Juracy

{um olhar}

Um exercício de afinação. Eu e Georgette, duas cordas vibrando dissonantes. Eu lhe assistia e me assistia. Observava nosso movimento lento rumo à consonância. No início, um grande “afffffffff” ressoava na minha cabeça. As palavras se amontoavam ao redor de mim, e eu não deixava nada entrar. Ela se equilibrava entre a interação com o público, a representação de Joana Dark dos Matadouros, a aula engajada de Simone Weil e os conceitos de Marx e Hegel, entre a operação obsessiva de um violoncelo e sucessivas xícaras de café.

Ela se revezava entre estas vozes com muita tranquilidade, como uma contadora de histórias. Dançava com o arco do violoncelo como se manipulasse uma espada. Andava sobre o linóleo preto até desvendá-lo como um grande quadro negro, onde ela mesma se escrevia. Abria os assuntos surpreendentemente cada vez mais atuais. Ela era o próprio pensamento em movimento.

Do meu lado, o “affffffff” foi sendo cada vez menos apatia, se transformando em interesse, em discussão, em engajamento, em curiosidade, em riso e sorriso preso na boca, em arrepio. Eu via nosso mundo e tempo passarem pelo palco. Eu era o próprio pensamento em movimento.

Éramos todos pensamento.

Georgette nos apresenta um elogio ao pensamento. Nos mostra a importância de nos reconciliarmos com ele, de afiá-lo para expor as ciladas desses nossos tempos, do nosso país, das nossas relações. É tempo de reconhecer que os modelos vigentes fracassaram e que a verdade permanece secreta ou convenientemente escondida. Todos somos igualmente finitos e, portanto, insuficientes individualmente e complementares no coletivo. A verdade está nas coisas e cabe a nós abandonarmos a ilusão de que somos indivíduos infinitos para que possamos finalmente desemaranhar o pensamento latente do mundo. É tempo de desmascarar os raciocinantes com o pensamento racional. Para isso, não é preciso nem diferenciá-los entre si, saber seus nomes, basta ouvi-los tentando pensar.

O pensamento nos livrará da opressão.

Roberto Dagô, integrante do grupo de pesquisa Jovens Curadores

Publicado em 31 de agosto de 2017