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[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] HÁ MAIS FUTURO QUE PASSADO

Foto: Humberto Araújo
Foto: Humberto Araújo

{um olhar}

Teatro-documentário pela descolonização do conhecimento e das artes

Brasília, 31 de agosto de 2017

Clarisse, Daniele, Cris e Mariana,

Há mais futuro que passado, apresentado por vocês ontem no Cena Contemporânea 2017, é um manifesto necessário contra os nossos privilégios enquanto homens na história da humanidade. E que vergonha deu de todo nosso machismo que se retroalimenta no conforto das nossas calças. O teatro-documentário de vocês, que nos conta a história de grandes mulheres artistas na América Latina, é aquele tapa didático que a gente precisa pra acordar. Por que só lembramos de homens diante dos grandes feitos históricos? Aprendemos assim, a cada geração. E, enquanto não houver pessoas como vocês, que contestem aquilo que nos disseram que é a verdade, estaremos colonizados.

De fato, em 517 anos de “história eurocêntrica” no Brasil, temos apenas 128 anos sem colonização oficial – mas continuamos em colônia até hoje, em muitos aspectos. Enquanto houver o “papel da mulher”, continuaremos em colônia. Enquanto eu continuar sendo o único negro em vários espaços que frequento, continuaremos em colônia. Enquanto depreciarmos o Brasil para enaltecer a Europa, continuaremos em colônia. Enquanto nossas referências teóricas e artísticas forem somente masculinas, ricas, brancas, cristãs e heterossexuais, continuaremos em colônia. Temos muitos anos pela frente pra reverter esse tipo de aprendizado hierárquico. Há mais futuro que passado. E vocês nos provocam o exercício de olharmos cada um para o próprio umbigo, assumirmos a meia culpa diante dos privilégios que temos, para em seguida tentarmos nos somar e descolonizar.

Como disse a escritora portuguesa negra Grada Kilomba em palestra-performance realizada em São Paulo, em 2016, “que alienação ser forçado a identificar-se e a performatizar a si mesmo/a partir do roteiro feito pelo sujeito branco. Que decepção sermos forçados/as a olhar para nós mesmos/as como se estivéssemos no lugar deles/as. E que dor encontrar-se preso/a nesta ordem colonial”. Quando falarei de Grada sem precisar afirmar que ela é negra? Precisamos descolonizar nossas casas, nossos filhos, nossos amigos, nossas práticas diárias, nossos representantes políticos, nossas críticas de Artes Cênicas. Das sete pessoas que criticam o Cena, apenas duas são mulheres. Esta carta se inscreve também como uma tentativa de descolonização.

Esses dias eu estava estudando o clássico do historiador Nelson Werneck Sodré, História da Imprensa no Brasil (1999), e me deparei várias vezes com o termo “homens das letras”. O livro narra a imprensa de 1500 ao século XIX. Não vi uma mulher ser mencionada. E me perguntei: quem eram as Mulheres das Letras? O google deu aquela ajuda pra eu descobrir Narcisa Amália de Campos (1852-1924), primeira jornalista profissional do Brasil, feminista e abolicionista. Passando por alguns artigos, descobri que várias mulheres, durante esse período, se travestiam de pseudônimos masculinos para serem aceitas nos folhetins. A história não é mesmo só aquilo que a gente vê. É aquilo que se revela quando a gente nada contra a maré.

Sobre a encenação que vocês nos mostram, o ritmo de apresentação das histórias contadas em cartas, que se repetem inúmeras vezes com pouca variação estilística e de intensidade, me levou a um conforto da apreciação – daquele tipo que distancia mais que acolhe ou instiga. Mais ou menos assim: uma-carta-um-vídeo-uma-história-uma-carta-um-vídeo-uma-história-uma-carta-um-vídeo-uma-história… A outra questão trata da dramaturgia coletiva que vocês assinam. Fiquei pensando a respeito da solução encontrada para arrematar essa trama que costura as histórias dessas grandes mulheres por meio de cartas que teriam sido enviadas entre as artistas.

Na verdade, as cartas foram criadas por vocês para solucionar esse enredo. Como um deus ex machina*, todos os problemas são resolvidos. Após nos contarem a biografia de mulheres como a estilista brasileira Zuzu Angel e a poeta peruana Victoria Santa Cruz, vocês nos revelam: essa história das correspondências é inventada; as cartas não foram trocadas por elas; essa foi a nossa forma de mostrar mulheres invisibilizadas. Pra mim, que embarquei nesse enredo real, consistente e político, foi como um tomar golpe disfarçado de “nossa ficção”.

Nademos juntos. Estou com vocês,

Danilo**

*A expressão “deus ex machina”, do latim, significa literalmente “deus surgido da máquina”. O termo é utilizado para solucionar, de forma inesperada, uma obra de ficção.

**Danilo Castro é ator, jornalista e crítico de Artes Cênicas. Escreve, entre outros, em blog próprio (http://odanilocastro.blogspot.com.br)

{rabiscos}

Está nascendo um novo mundo.

Ele está ancorado numa mudança de pensamentos;

Revolucionar a educação,

As formas de relação e produção.

 

Está nascendo um novo mundo.

Há todo momento tentam matá-la, tentam matá-las em tantos níveis: sexual, emocional, político;

Apagam da história, impedem o conhecimento.

Conhecer é expansão;

É relatividade;

É empoderamento.

 

Teatro Aula,

porque às vezes é preciso dizer com todas as letras,

porque têm vezes que a subjetividade, mesmo presente na suposta protagonista Ana, não dá conta da realidade,

porque está nascendo um novo líder, e ele não é homem.

 

Explicar;

Reivindicar;

Rir;

Chorar;

E, se disserem louca, bem… aí não entenderam nada.

 

Têm espetáculos que a gente assiste e só queria que todo mundo visse,

Que fosse obrigatório,

Que fosse aula,

Ou será que continuaremos discutindo uma possível infidelidade de Capitu?

Gustavo Haeser, integrante do grupo de pesquisa Jovens Curadores

Publicado em 31 de agosto de 2017