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[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] TETO E PAZ

Foto: Rômulo Juracy
Foto: Rômulo Juracy

{um olhar}

Ter opinião sobre algo é um risco doloroso. Escolher dizer algo é deixar um infinito de coisas caladas. No momento em que reflito sobre o espetáculo “Teto e Paz”, sei que muitas coisas me escapam, que muitas coisas poderiam ganhar novos lugares, valores e sentidos, me transformariam. Sim, isso é um pedido de desculpas antecipado. Um pedido de desculpas por todas as coisas que não sei e que não poderão temperar o meu olhar. Ao mesmo tempo, “Teto e Paz” nos traz também essa provocação: de vidas e experiências que não podemos imaginar.

O grupo La Casa Incierta traz um espetáculo construído com jovens abrigados nas Unidades de Acolhimento de Brasília, com vivências variadas em extrema situação de vulnerabilidade social. Com esta iniciativa incrível, de força criadora arrebatadora, o grupo diz querer valorizar essas histórias e personagens reais trazendo ao palco legitimidade de discurso e protagonismo, sensibilizando ao plateia para estas realidades e identificando outros públicos. No espetáculo, alegam terem dado um passo adiante em relação ao trabalho anterior, “Meninos da Guerra”, por investir mais na poesia e abstração da dramaturgia.

É a partir daqui que meus pedidos de desculpas se justificam. Principalmente aos jovens atores que toparam ser lançados na arena do teatro para se digladiar com repetição, corpo, palavra, sentimento, luz, espaço, objetos, figurinos, olhares… As ferramentas nunca dominadas, porém para sempre perseguidas, de todo ator de teatro.

A melhor forma de trabalhar com atores “não-profissionais” no teatro é realmente obrigando-os a “atuar”? Eles devem decorar um texto hermético, fazer movimentações empoladas e assumir a pesada carapuça de heróis? Exaltam sua espontaneidade e legitimidade geradas pelas vivências reais de suas histórias e, na hora de honrar essas vidas no palco, eles devem ser engessados e condicionados em uma forma teatral que nem mesmo os atores profissionais se sentem mais obrigados a desempenhar? Não há outra maneira, outro processo, outro raciocínio? Outros teatros a serem descobertos nessa inusitada e maravilhosa parceria?

Há alguns anos, o Cena Contemporânea trouxe o espetáculo “Matéria-prima”, trabalho que deu projeção internacional pra companhia também espanhola “La Tristura”. O grande slogan do espetáculo adulto era o elenco constituído por quatro atores de 13 anos. Eu lembro que saí indignado da sessão porque a dramaturgia ficava enfiando na boca daqueles atores milhões de frases e significados “transcendentais e cabeções” que não cabiam no formato daquelas bocas, que poderiam dizer coisas inclusive muito melhores com seu próprio formato. É como se o espetáculo fosse um evento exótico e se utilizasse daquelas crianças para agregar valor a si, mas não confiasse na sua condição especial de falar e ver o mundo, pois a forma “adulta e cabeçona será sempre melhor”. É claro que muitos da plateia suspiravam e passavam a sessão inteira se revezando com comentários tipo “que fofinha”, “que lindinho”, “awwwnnn”… Manifestações que, eu acho, falam por si: o espetáculo foi bem sucedido em se vender, afinal, não quero ser eu a pessoa que vai criticar seriamente uma criança.

Mas não é uma crítica à criança, e, sim, aos diretores, dramaturgos, sonoplastas, aos responsáveis em quem estas jovens figuras confiaram sua exposição.

Da mesma forma, vai minha crítica e provocação ao grupo La Casa Incierta. Vivemos num mundo que carece de ações de afeto e empatia e que, ao mesmo tempo, cobra que estas ações sejam cada vez mais cuidadosas. É uma equação cruel, mas nos levará além. Isso não é um julgamento do equívoco, mas uma oxigenação de um esquema teatral que está em construção (e que tenha vida longuíssima e larguíssima), e que a maioria aplaudirá, mas que nem por isso cumpre necessariamente seus propósitos ideológicos, de legitimidade e protagonismo, de dignificar essas figuras e suas histórias.

Quero destacar a atuação da Iara dos Anjos (para mim, uma das melhores intérpretes em cena), que já desejo rever em muitos palcos da vida e do mundo. Se essa guria quiser seguir sendo atriz, sei que vai arregaçaaaaar com a nossa cara! Que presença forte e emocionante!

Sei que estou transformando em missa isso que era pra ser um dedinho de prosa, por isso não vou entrar em detalhes, mas devo deixar claro que não acho que o problema do espetáculo são seus jovens atores. Ao meu ver, é o engenhoso, porém pouco explorado cenário; a profusão de elementos e artifícios que não tem tempo de exercitar sua força; o hermetismo do texto que rouba a simplicidade tão humana; a sonoplastia que beira o apelativo ao se desesperar por “emocionar”… Quanto à poesia, ela não é garantia nem de qualidade nem de encanto por parte do público; ela é elemento de comunicação passível de indiferença como qualquer outro, dependendo da forma de sua condução.

Isso tudo é apenas um dos olhares possíveis sobre a obra, e eu quero muito ver aquilo ser lindo no seu máximo. O trabalho tem ótimos momentos e é recheado de potências e grandes cenas. Meu interesse é esse: sentar na plateia deste trabalho e ver todas estas potências transformadas em experiências sensíveis. Estou aberto e sedento por compartilhar pormenores destas e outras impressões com a equipe, se interessar.

O público e os jovens atores do projeto têm mais capacidade de sensibilizar e serem sensibilizados do que o espetáculo deixa ver.

Cia La Casa Incierta, obrigado por se importarem.

Roberto Dagô, integrante do grupo de pesquisa Jovens Curadores

 

Publicado em 28 de agosto de 2017