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[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] VAGACARNE

Foto: Humberto Araújo
Foto: Humberto Araújo

{um olhar}

Um esforço sobre-humano

Na guerra das palavras escrever é se achar em campo de batalha. Um campo onde a prosa disputa com o verso. E agora, com o fogo lento dos dias, venho contar que venceu o verso. Vaga Carne é um esforço sobre-humano da criadora mineira Grace Passô, um esforço de teatro que pediu de mim uma crítica retalhada em verso. Um verso que quer se aproximar do poder de ser voz, de ser lido em voz alta, de ser agitado e agitar o ar, de ser um vômito colorido, celebrando a impossibilidade de dizer certas coisas. Dissociar a carne da voz, desossar a crítica (produto de razão) para ser jogada em verso. Meu cachorro comeu minha crítica, minha capacidade pra prosa bem-resolvida. O que se segue é digestão:

O corpo de uma mulher negra abriu os trabalhos do festival (com avesso demoníaco, overdose de ironia, uma língua de ecos racistas como uma montagem, a agressividade punk e um rosto que dança, raiva sobre tudo)

Ntando…Cele… Começou.

 

O corpo de outra mulher negra fecha os trabalhos de um festival

Alargando os horizontes

Grace…Passô (profético nome)

Com a garganta

Sem grito, pedindo licença

Uma voz adentra

Penetra de protagonista

(Melhor será cobrir a garganta)

Adentra um corpo que vibra

Vibra, vibra, vibra

Narrando a si mesma

Luz acompanha

É capanga do horror

Horror risonho

Mineiro como uma

Assombração de pé de fogueira

(Grace ama os sons, ama os poderes que a voz faz em mísseis, lançados na forma de palavras)

 

O ar bombardeado com o nosso desperdício

Uma voz veio armada de palavras brincar conosco

Vamos ouvir o tanto que se transforma a voz que quer

Gozar-se numa

superfície

Tomar uma carne pra ser sua metáfora, sua dieta de passatempo

Afora o som, os gestos, o controle diante de nós

De um ser, de uma corpo-mulher da negra carne

Que estava ali, vaga, então a voz foi lá e…

!

Foi lá e fez seu campo de experimento,

Provo, testo, texto

foi lá dentro dela achar um limite de carne pra se fazer ouvível

 

(O horror

Mora na possibilidade

Não no tempo, não no ritmo,

Mora o horror no acontecimento,

Na possibilidade do acontecimento)

É é erótico demais isso de ouvir de verdade

 

Os olhos abertos às sugestões

Ela não parece resistir

Parece que está se tornando, se deixando tomar

Como terra colonizada

O peso, as descrições, as escatologias

A curiosidade de uma voz é cruel

Xinga cala rasga remenda explora mergulha explora explora lembra lembra mexe e acha

Ah! Como somos pouco ousados

Falta a coragem pra voz atravessar o abismo engolido da garganta

E tudo que essa mulher engole?

Quantas palavras por dia essa aí não cala?

Deixa morrer palavras dentro de si que a voz vai resgatar

E rasgar a mulher exposta no espaço

Controle recém-nascido

A voz engatinha nos limites do corpo

Brinquedo de introduzir

A carne é instrumento

Fonte de falar

Fonar a agonia

Sem intenção explícita

Sem pornofonia de opinião

(Grace é política  )

fala de poder

A gente fica órfão de posição

Tendo que conviver com a própria

Achar a nossa

Selecionar das vozes que botaram

Qual é que é minha?

 

Exame das faltas dos entulhos

Pra voz a gente é só lugar

Lugar de reinar

Carne que serve

Se descuidar fica vaga

(Esmero tamanho de atriz

Que deixa a língua catapultar sentidos

Nos atentos e desatentos

Despretensão de doutrinar)

Apenas uma voz brincando

No parquinho-de-carne

Até que lhe chegue o tédio

 

Todo dia um desafio

Entra aquele corpo que não é daquela voz

Uma não pertence a outra

Espanca, espanca, espanta

Depois de tanto grupo

Tanta publicação

Tanta ideia dividida

Tanto afeto fazendo

Fronteira com as fibras

Daquela carne

Ali está

Aqui está

Com muita surpresa

Um esforço sobreumano

A maior beleza

É o agenciamento

É aquele suspiro

De liberdade

É a habilidade de causar silêncios

E se fazer saudade

 

Com todo o nosso descuidado

Com as filhas daquela voz

As palavras

Todas as palavras

Vão lotando a carne

Que vaga

A nossa memória

Que vaga a nossa

Falta de delícia

Que vaga qualquer tentativa de definição

Que vaga trágica e hilária fica no mundo

Que vaga que nos perdoa quando aniquila

Que frágil é essa tal carne

Essa paixão do nosso apego

Essa mentira de nós mesmos

Uma voz devora

Usa brinca chama espreme

Experimenta

Testo testa texto

Prova suga chupa

E abandona

 

Um esforço de teatro

Me pega

Emprestado do mundo

Leva pra uma saga

Uma jornada

Mesmo que vaga

E me devolve

 

Vaga carne

Me devolveu poderoso

Como um homenino

Que viu

A cara

A fuça

E a mágoa mágica

da assombração do nosso tempo

 

Que toda a voz

Que não se deixa desejo de língua

Serve a captura de falar

E portanto

Por mais som que saia

Se não se escuta não é palavra

É ferida que estanca o caminho

Da fala

É garganta que barulha

Geme grita curte e vocifera

Não descobriu que nasceu cortada

Que ninguém há que escute

Então sangra

Preto

 

Grace

Voz e fera

Quem me dera

Um dia vir

A vociferar

Como Grace

Vocifera

 

Por ora é vigiar

Que não vague a minha carne

Pras vozes que não pedem

Licença

 

E aqui eu no escrito

Eu calo

A partilha

E te deixo com esse

Aqui

De

Silêncio

 

Yuri Fidelis, integrante do grupo de pesquisa Jovens Curadores

 

 

{outros dois olhares juntos numa tacada só}

Vaga Carne: dramaturgias além da escrita ou a carne que cai

Brasília, 5 de setembro de 2017

Grace,

Depois de assistirmos a sua Vaga Carne, apresentada ontem no Cena Contemporânea 2017, ficamos refletindo sobre as dramaturgias da sua obra em três instâncias: no seu corpo, na sua voz e no seu texto escrito. A maneira como tudo emana de você nos levou a essas questões. E, de fato, são várias escritas que se constroem à medida em que sua poética acontece com o suporte da equipe de criação que caminha do seu lado: Kenia Dias, Nadja Naira, Nina Bittencourt, Ricardo Garcia e Ricardo Alves Jr.

A grande personagem de sua trama é uma voz, aquela voz, a voz-entre que pode penetrar qualquer matéria: líquida, sólida ou gasosa. Diante dos nossos olhos, ela perambulou no palco do Teatro Garagem, passou por uma cadeira desocupada, ocupou-a, esteve em um refletor, na cortina e, por fim, habitou o corpo de uma mulher. Uma mulher negra. Uma mulher negra grávida. Uma mulher negra grávida que levou um tiro. Uma mulher negra grávida que levou um tiro e agoniza minutos antes de morrer. Uma mulher negra grávida e morta. Que mesmo ainda que viva é arrasada pelas barbáries que está sujeita ao ser quem é e viver no mundo onde ela vive.

A palavra ganha corpo, o corpo ganha palavra. Os objetos, as coisas, os sentimentos e tudo aquilo que abarca qualquer tipo valor é solicitado a ter nome, função e propriedades para uma nova análise sobre o que dizemos delas e o que elas significam.  Nome para a convocação. Função para alguma finalidade. E propriedade para que se tenha algum sentido de posse sobre a existência. Tudo que tem identidade e estabilidade é colocado em questão num vazio, um estado comum para aquele que vive.

O que está vivo se desloca, vaga por aí e por aqui a desorganizar nossos conceitos, nossas ideias e nossas fantasias. Ambos, corpo e voz, se estruturam de tal forma que ficamos imaginando como seria outra atriz encenando aquilo que é tão seu, enquanto autora desse trabalho. E, ainda que o texto seja a base para a construção da sua obra, a encenação e a maneira como ele jorra da sua boca são tão fortes que parecem até que estão sendo criados ali, em cena, num fluxo da consciência. Como se não houvesse, e talvez não haja, hierarquia entre as instâncias corpo-voz-texto-voz-texto-corpo-texto-voz-corpo.

Ficamos atentos a qualquer movimento, expressão física e aos pequenos cansaços que te movem nessa flutuação descontrolada, ou não, no desconforto de uma roupa apertada. Essa voz inquieta e infratora a vestir essa roupa-corpo se sente comprimida e dá-se a licença de ser quem ela é enquanto a escuridão interna dessa carne é seu território ocupado. Ah, Grace! Que corpo é esse que nos limita de sermos tudo o que somos na prática e na poesia? Que corpo é esse que fica disponível, ou vulnerável, à penetração irresponsável de tantos discursos? Que contradições você enxerga na sua carne vacante para além do trabalho físico e do texto escrito? Que ato violento é esse de ser invadida por uma voz certamente repleta de interrogações? E se… e se… a carne ocupada por essa voz fossem as nossas, Danilo e Leo? Que palavras surgiriam?

Nem todas essas perguntas são dignas de resposta, mas talvez todas sejam apropriadas para a escuta. A sensação de terminar e sair cambaleante a vagar com nossas questões individuais e naturalmente coletivas pode ser um reflexo de como um dos espectadores, ouvido sem ser percebido, nos disse numa conversa alheia na saída do teatro sobre a tua carne: Cataplof!

Com carinho,

Danilo e Leo*.

*Danilo Castro é ator, jornalista e crítico em artes cênicas. Escreve, entre outros, em blog próprio (http://odanilocastro.blogspot.com.br)

*Leonardo Shamah é performer, pesquisador, diretor e provocador.

Publicado em 19 de setembro de 2017