[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] VAGACARNE
{um olhar}
Um esforço sobre-humano
Na guerra das palavras escrever é se achar em campo de batalha. Um campo onde a prosa disputa com o verso. E agora, com o fogo lento dos dias, venho contar que venceu o verso. Vaga Carne é um esforço sobre-humano da criadora mineira Grace Passô, um esforço de teatro que pediu de mim uma crítica retalhada em verso. Um verso que quer se aproximar do poder de ser voz, de ser lido em voz alta, de ser agitado e agitar o ar, de ser um vômito colorido, celebrando a impossibilidade de dizer certas coisas. Dissociar a carne da voz, desossar a crítica (produto de razão) para ser jogada em verso. Meu cachorro comeu minha crítica, minha capacidade pra prosa bem-resolvida. O que se segue é digestão:
O corpo de uma mulher negra abriu os trabalhos do festival (com avesso demoníaco, overdose de ironia, uma língua de ecos racistas como uma montagem, a agressividade punk e um rosto que dança, raiva sobre tudo)
Ntando…Cele… Começou.
O corpo de outra mulher negra fecha os trabalhos de um festival
Alargando os horizontes
Grace…Passô (profético nome)
Com a garganta
Sem grito, pedindo licença
Uma voz adentra
Penetra de protagonista
(Melhor será cobrir a garganta)
Adentra um corpo que vibra
Vibra, vibra, vibra
Narrando a si mesma
Luz acompanha
É capanga do horror
Horror risonho
Mineiro como uma
Assombração de pé de fogueira
(Grace ama os sons, ama os poderes que a voz faz em mísseis, lançados na forma de palavras)
O ar bombardeado com o nosso desperdício
Uma voz veio armada de palavras brincar conosco
Vamos ouvir o tanto que se transforma a voz que quer
Gozar-se numa
superfície
Tomar uma carne pra ser sua metáfora, sua dieta de passatempo
Afora o som, os gestos, o controle diante de nós
De um ser, de uma corpo-mulher da negra carne
Que estava ali, vaga, então a voz foi lá e…
!
Foi lá e fez seu campo de experimento,
Provo, testo, texto
foi lá dentro dela achar um limite de carne pra se fazer ouvível
(O horror
Mora na possibilidade
Não no tempo, não no ritmo,
Mora o horror no acontecimento,
Na possibilidade do acontecimento)
É é erótico demais isso de ouvir de verdade
Os olhos abertos às sugestões
Ela não parece resistir
Parece que está se tornando, se deixando tomar
Como terra colonizada
O peso, as descrições, as escatologias
A curiosidade de uma voz é cruel
Xinga cala rasga remenda explora mergulha explora explora lembra lembra mexe e acha
Ah! Como somos pouco ousados
Falta a coragem pra voz atravessar o abismo engolido da garganta
E tudo que essa mulher engole?
Quantas palavras por dia essa aí não cala?
Deixa morrer palavras dentro de si que a voz vai resgatar
E rasgar a mulher exposta no espaço
Controle recém-nascido
A voz engatinha nos limites do corpo
Brinquedo de introduzir
A carne é instrumento
Fonte de falar
Fonar a agonia
Sem intenção explícita
Sem pornofonia de opinião
(Grace é política )
fala de poder
A gente fica órfão de posição
Tendo que conviver com a própria
Achar a nossa
Selecionar das vozes que botaram
Qual é que é minha?
Exame das faltas dos entulhos
Pra voz a gente é só lugar
Lugar de reinar
Carne que serve
Se descuidar fica vaga
(Esmero tamanho de atriz
Que deixa a língua catapultar sentidos
Nos atentos e desatentos
Despretensão de doutrinar)
Apenas uma voz brincando
No parquinho-de-carne
Até que lhe chegue o tédio
Todo dia um desafio
Entra aquele corpo que não é daquela voz
Uma não pertence a outra
Espanca, espanca, espanta
Depois de tanto grupo
Tanta publicação
Tanta ideia dividida
Tanto afeto fazendo
Fronteira com as fibras
Daquela carne
Ali está
Aqui está
Com muita surpresa
Um esforço sobreumano
A maior beleza
É o agenciamento
É aquele suspiro
De liberdade
É a habilidade de causar silêncios
E se fazer saudade
Com todo o nosso descuidado
Com as filhas daquela voz
As palavras
Todas as palavras
Vão lotando a carne
Que vaga
A nossa memória
Que vaga a nossa
Falta de delícia
Que vaga qualquer tentativa de definição
Que vaga trágica e hilária fica no mundo
Que vaga que nos perdoa quando aniquila
Que frágil é essa tal carne
Essa paixão do nosso apego
Essa mentira de nós mesmos
Uma voz devora
Usa brinca chama espreme
Experimenta
Testo testa texto
Prova suga chupa
E abandona
Um esforço de teatro
Me pega
Emprestado do mundo
Leva pra uma saga
Uma jornada
Mesmo que vaga
E me devolve
Vaga carne
Me devolveu poderoso
Como um homenino
Que viu
A cara
A fuça
E a mágoa mágica
da assombração do nosso tempo
Que toda a voz
Que não se deixa desejo de língua
Serve a captura de falar
E portanto
Por mais som que saia
Se não se escuta não é palavra
É ferida que estanca o caminho
Da fala
É garganta que barulha
Geme grita curte e vocifera
Não descobriu que nasceu cortada
Que ninguém há que escute
Então sangra
Preto
Grace
Voz e fera
Quem me dera
Um dia vir
A vociferar
Como Grace
Vocifera
Por ora é vigiar
Que não vague a minha carne
Pras vozes que não pedem
Licença
E aqui eu no escrito
Eu calo
A partilha
E te deixo com esse
Aqui
De
Silêncio
Yuri Fidelis, integrante do grupo de pesquisa Jovens Curadores
{outros dois olhares juntos numa tacada só}
Vaga Carne: dramaturgias além da escrita ou a carne que cai
Brasília, 5 de setembro de 2017
Grace,
Depois de assistirmos a sua Vaga Carne, apresentada ontem no Cena Contemporânea 2017, ficamos refletindo sobre as dramaturgias da sua obra em três instâncias: no seu corpo, na sua voz e no seu texto escrito. A maneira como tudo emana de você nos levou a essas questões. E, de fato, são várias escritas que se constroem à medida em que sua poética acontece com o suporte da equipe de criação que caminha do seu lado: Kenia Dias, Nadja Naira, Nina Bittencourt, Ricardo Garcia e Ricardo Alves Jr.
A grande personagem de sua trama é uma voz, aquela voz, a voz-entre que pode penetrar qualquer matéria: líquida, sólida ou gasosa. Diante dos nossos olhos, ela perambulou no palco do Teatro Garagem, passou por uma cadeira desocupada, ocupou-a, esteve em um refletor, na cortina e, por fim, habitou o corpo de uma mulher. Uma mulher negra. Uma mulher negra grávida. Uma mulher negra grávida que levou um tiro. Uma mulher negra grávida que levou um tiro e agoniza minutos antes de morrer. Uma mulher negra grávida e morta. Que mesmo ainda que viva é arrasada pelas barbáries que está sujeita ao ser quem é e viver no mundo onde ela vive.
A palavra ganha corpo, o corpo ganha palavra. Os objetos, as coisas, os sentimentos e tudo aquilo que abarca qualquer tipo valor é solicitado a ter nome, função e propriedades para uma nova análise sobre o que dizemos delas e o que elas significam. Nome para a convocação. Função para alguma finalidade. E propriedade para que se tenha algum sentido de posse sobre a existência. Tudo que tem identidade e estabilidade é colocado em questão num vazio, um estado comum para aquele que vive.
O que está vivo se desloca, vaga por aí e por aqui a desorganizar nossos conceitos, nossas ideias e nossas fantasias. Ambos, corpo e voz, se estruturam de tal forma que ficamos imaginando como seria outra atriz encenando aquilo que é tão seu, enquanto autora desse trabalho. E, ainda que o texto seja a base para a construção da sua obra, a encenação e a maneira como ele jorra da sua boca são tão fortes que parecem até que estão sendo criados ali, em cena, num fluxo da consciência. Como se não houvesse, e talvez não haja, hierarquia entre as instâncias corpo-voz-texto-voz-texto-corpo-texto-voz-corpo.
Ficamos atentos a qualquer movimento, expressão física e aos pequenos cansaços que te movem nessa flutuação descontrolada, ou não, no desconforto de uma roupa apertada. Essa voz inquieta e infratora a vestir essa roupa-corpo se sente comprimida e dá-se a licença de ser quem ela é enquanto a escuridão interna dessa carne é seu território ocupado. Ah, Grace! Que corpo é esse que nos limita de sermos tudo o que somos na prática e na poesia? Que corpo é esse que fica disponível, ou vulnerável, à penetração irresponsável de tantos discursos? Que contradições você enxerga na sua carne vacante para além do trabalho físico e do texto escrito? Que ato violento é esse de ser invadida por uma voz certamente repleta de interrogações? E se… e se… a carne ocupada por essa voz fossem as nossas, Danilo e Leo? Que palavras surgiriam?
Nem todas essas perguntas são dignas de resposta, mas talvez todas sejam apropriadas para a escuta. A sensação de terminar e sair cambaleante a vagar com nossas questões individuais e naturalmente coletivas pode ser um reflexo de como um dos espectadores, ouvido sem ser percebido, nos disse numa conversa alheia na saída do teatro sobre a tua carne: Cataplof!
Com carinho,
Danilo e Leo*.
*Danilo Castro é ator, jornalista e crítico em artes cênicas. Escreve, entre outros, em blog próprio (http://odanilocastro.blogspot.com.br)
*Leonardo Shamah é performer, pesquisador, diretor e provocador.