Notícias

[CRÍTICA ] [AUTÓPSIA]

Foto: Junior Aragão

Um teatro a serviço de seu tempo. Narrativas que optam por colocar o dedo na ferida e escancarar aos olhos tudo o que fingimos não ver ou nos esquecemos de enxergar no cotidiano. Autópsia III e IV dá continuidade ao excelente e forte trabalho do grupo Sutil Ato iniciado em 2011, quando ainda tinha ares de projeto de faculdade. Em 2014 os primeiros atos ganharam o gosto do público em Brasília e, desde então, deixaram claro que o grupo se coloca a serviço da sociedade em cena. A ideia é seguir os preceitos de Plínio Marcos, nome que inspirou toda a dramaturgia: “Eu faço teatro em favor do povo, faço para incomodar os que estão sossegados”.

No trabalho atual, duas das camadas mais esquecidas e tratadas como invisíveis ganham espaço e protagonismo. As histórias foram escritas pelos próprios integrantes a partir de encontros e entrevistas com cidadãos que vivenciaram ou vivenciam o sistema penitenciário do Distrito Federal e com recicladores do aterro de lixo da cidade estrutural. Histórias que se cruzam, entrelaçam e se completam entre o caos. Desemprego, crise, morte, cárcere, liberdade, sonho, vontade, vazio e reconstrução. No palco, histórias de quem vive entre o limite da resignação e da insanidade.

Sem medo, cada ator entrega-se por completo ao trabalho. Um emaranhado de corpos que pulsam até a última potência. O elenco cria a partir da própria realidade e não tem receio de usar o erotismo, o grito, o impacto ou a violência. Em cena, histórias que transitam em nosso próprio cotidiano. Quantos catadores caminham despercebidos lado a lado ao que reconhecemos como nossa experiência?

Os trabalhos do Sutil Ato são marcados pelo debate social e por colocar à prova a realidade brasileira, propondo incômodo e questionamentos através do ofício da arte. A direção e dramaturgia de Jonathan Andrade confirmam a potência de um dos grandes nomes da cena teatral de nossa cidade e nos orgulham ao representar tão bem a criação cênica de Brasília. Profissionalismo, técnica, treino, entrega e vivências se reúnem para dar vida a um dos textos mais fortes do Cena.

A cenografia foi criada para dialogar com a realidade que perceberam durante o processo. Garrafas, brinquedos velhos, sacos e materiais de todo o tipo foram comprados no próprio lixão e transformados em cenário. Os figurinos de catadores foram entregues por famílias reais que trabalhavam no local.

Na primeira metade, a realidade do cárcere aparece crua, com grades à mostra e sonhos que resistem em um espaço pronto para abater qualquer resquício de dignidade. No último ato, as relações humanas que se fortalecem onde o lixo sobressai. Gente que luta para não ser confundida com a montanha de restos que precisa desbravar. Nos dois atos a experiência humana e as relações criadas entre indivíduos parecem se destacar como a última alternativa possível à sanidade.

No palco, um turbilhão de questionamentos éticos e uma pequena mostra de nosso caos social. As parcelas mais marginalizadas são retratas para relembrar que há muito mais no mundo do que nossa pequena indignação. Para experimentar melhor a realidade de cada figura retratada na montagem os atores participaram de vivências com presos e moradores da Estrutural.

O cheiro constante, os urubus, a montanha de lixo, a imensa quantidade de moscas e a dificuldade do corpo frente ao sol, ao risco e ao calor mudaram de vez a percepção de cada integrante.  As experiências foram brutais e transformadoras. É perceptível o entendimento do elenco em cena. Ao fim do espetáculo, cada criador compartilha com o público um pouco do que reverberou de sua experiência pessoal naqueles lugares.  De olhos abertos ou fechados, atentos ou distraídos, estamos todos irreversivelmente distantes e absolutamente próximos. É preciso enxergar sem lentes o caminho que nos cerca.

Isabella de Andrade.

* Isabella de Andrade é escritora, atriz e jornalista, graduada em Comunicação Social (UnB) e Artes Cênicas (UnB). Publicou o livro Veracidade (2015) e participou da antologia poética Casa do Desejo – Literaturas que desejamos, lançada na Flip em 2018. Idealizadora do projeto oCiclorama (www.ociclorama.com)

 

Publicado em 3 de setembro de 2018