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[CRÍTICA] [CASCO AZUL]

 

Foto: Thiago Sabino

O grupo de Teatro Amplio foi criado com a proposta de relembrar e refletir, através da cena, sobre a história latino-americana no Chile. Com uma ironia esparramada os quatro atores mostram no palco as duas faces da presença dos Capacetes Azuis, nome pelo qual são conhecidas as tropas multinacionais que servem às Forças de Paz da Organização das Nações Unidas, em território Haitiano. Acompanhamos as relações internas de um grupo de quatro homens em uma base militar de Porto Príncipe, no Haiti, enquanto a revolução e o caso se espalham pela ilha.

Dentro do pequeno forte o desequilíbrio entre a missão de paz e os preconceitos arraigados em cada homem são postos à prova. Como defender um país que lhes parece tão distante e se relacionar de maneira íntegra com uma cultura que enxergam com tamanho preconceito, desinformação, crendices e clichês. O enérgico elenco cumpre seu papel e mostra as desavenças internas frente à mistura de pensamentos que se formam em relação ao povo que explode a revolução do lado de fora.

Todo o texto do espetáculo é construído através de uma ironia debochada e um tanto perigosa, que brada pensamentos racistas e preconceituosos na busca por um incômodo reflexivo na plateia. Em parte, esse diálogo acontece. Acompanho as falas e crendices dos personagens frente ao povo haitiano com total desconcerto. “Serão zumbis? Pretos, macacos, selvagens. Comeram os soldados?”. As frases absurdas ditas de maneira cômica retratam fielmente a figura do homem que se constrói à parte da própria realidade que o cerca e repete ideias insanas com a mesma facilidade que caminha.

É possível entender claramente a criação e a função desse personagem. Ainda assim, permanece o receio de que esse diálogo não chegue de maneira eficiente a todos da plateia. Repetir o preconceito em cena, sem desconstruí-lo, tem o poder de combater ou reforçar tal ideia fora dos palcos? Ao longo do espetáculo, me divido entre o riso nervoso e o incômodo. O texto escancara as polêmicas que envolvem os grupos de missão de paz, envolvidos em acusações de abuso e exploração sexual contra a população que eles visam proteger.

O elenco é o ponto forte da montagem. Moises Angulo, Antonio Altamirano, Cristian Flores e Nicolas Zarate sustentam perfeitamente bem as figuras que criaram. Os intérpretes transitam bem entre a comicidade e a crítica social escrachada de seus personagens. O espetáculo foi inspirado no texto Sobre a teoria do eterno retorno aplicada à revolução no Caribe, do dramaturgo uruguaio Santiago Sanguinetti. A escolha por autores latino-americanos é uma das militâncias do grupo.

Quase ao fim da montagem, um cruzeiro de luxo se aproxima da costa em revolução e é bombardeado. Antes das luzes que piscam e alertam que o navio foi afundado, o elenco se questiona: Não seria sórdido que uma embarcação tão rica viesse passear de férias naquele pedaço de terra?

Diferentes contextos históricos se misturam em cena e é possível entender o quanto a história é cíclica. As verdades políticas surgem sem disfarces e incomodam. Por fim, pensamos em qual seria realmente o trabalho da ONU no Haiti, se não há total entrega aos povos que deveriam proteger. O espetáculo acerta em suas escolhas cênicas, ainda assim, não consigo deixar de pensar: as risadas que ecoam na plateia são de empatia, constrangimento ou um deboche que os torna cúmplice daqueles personagens?

Isabella de Andrade.

* Isabella de Andrade é escritora, atriz e jornalista, graduada em Comunicação Social (UnB) e Artes Cênicas (UnB). Publicou o livro Veracidade (2015) e participou da antologia poética Casa do Desejo – Literaturas que desejamos, lançada na Flip em 2018. Idealizadora do projeto oCiclorama (www.ociclorama.com)

Publicado em 30 de agosto de 2018