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[CRÍTICA] [COPO DE LEITE]

Foto: Humberto Araujo

Sérgio Maggio*

Assisti ao espetáculo “Copo de Leite”, de Gustavo Gris, por duas vezes. Em sua estreia, em 2017, no Espaço Imaginário, em Samambaia, e, nesta quinta-feira (23.08), no Teatro Paulo Autran, em Taguatinga. Entre uma e outra sessão, há o efeito da mão poderosa da estrada teatral que transformou e fortaleceu a presença da narrativa cênica no palco. Essa caminhada, no entanto, aponta um dilema crucial para a montagem:

Cristalizar-se poeticamente no formato erguido com ênfase na funcionalidade da emoção ou se desafiar a inscrever à montagem de maneira política no momento crucial em que vive a mulher brasileira?

Desde o primeiro instante, “Copo de Leite” traz em si essa tensão posta ao palco. É feminino ou é feminino-feminista? A sensação é de que as atrizes-criadoras, responsáveis pela proposição e organização dramatúrgica, gostariam de caminhar em direção a uma construção política e feminista. Porém, estão aprisionadas num formato espetacular, que optou claramente por uma concepção estética, feminina e poética.

Há uma preocupação frontal (e bravamente sem disfarces) de Gustavo Gris de enfatizar a carpintaria do belo e do emocional da cena. A trilha sonora, com uma não gratuita “Ave Maria”, de Gounod, na abertura das portas, e os desenhos fotográficos da cena buscam essa ênfase formal.  

Exemplo 1:

Num dado instante, em improviso atual, há uma quebra da quarta parede da cena. A atriz Lucélia Freire sai da personagem e pede que a iluminadora Lidianne Carvalho acenda os refletores. Provavelmente, com consentimento dessa colega de trabalho, as duas atrizes confidenciam a plateia que ela assina por meio de pseudônimo. Vão além: não gosta do nome de batismo. Livremente, as atrizes discordam da decisão pessoal de Lidianne e, Lucélia chega a qualificar o nome de brega. Há aí um aceno para se debater a “sororidade” (solidariedade feminina) e o machismo estrutural que organiza e estimula a competição entre mulheres como cruel arma de despolitização. Rapidamente, “Copo de Leite” recua em nome da estrutura cênica organizada a priori.

Exemplo 2:

A atriz Lucélia Freire assume espaço frontal à plateia e evoca mulheres míticas para a luta. Ao tambor, instrumento masculino, assume a percussão que a dimensiona como mulher negra, guerreira e potente. Nesse momento, a opção encontrada pela direção para Gabriela Correa em cena é completamente secundária. Em plano de fundo, a atriz cria imagens circulares com as mãos em benefício de Lucélia. A opção tira a força política da cena.  O que seria desse momento se ambas assumissem o front com seus tambores como se evocassem a plateia para uma guerra?

Não se trata aqui, nesse texto de caráter opinativo e fruto de um ponto de vista, de querer apontar linhas diretoriais para “Copo de Leite”. Ao contrário, dentro do que se propõe, Gustavo Gris faz uma bela peça poética, que visa nitidamente emocionar público, sobretudo feminino. Isso por si só não seria problemático se não houvesse essa constante colisão com o discurso dramatúrgico feminista que, por muitas vezes, quer eclodir como um vulcão no palco.

O microfone aberto ao canto do palco parece ser um desses pontos de escape soterrados pelo excesso formal da montagem. Por duas vezes, as atrizes vão para essa marca e, em vez de extrapolar sobre suas condições de mulheres, atrizes e negras, fazem uma espécie de breve mea-culpa sobre a dramaturgia e o processo criativo de “Copo de Leite”.

Assim, a narrativa de “Copo de Leite” oscila entre a potência do que pode alcançar e um estado de emoção que provoca lágrimas, mas não é capaz de trazer a luta pro peito. Começa apontando uma possibilidade ímpar no teatro: duas atrizes a confessarem o assédio masculino no momento em que, como profissionais de teatro, apresentam seus projetos culturais ao patrocinador.

Cria-se uma expectativa promissora de que Lucélia Freire e Gabriela Correa vão jogar uma lupa sobre suas experiências como atrizes dirigidas por homens e apontar esses confrontos em salas de ensaio, por exemplo. No entanto, após uma debochada e divertida coreografia, elas anulam essas perspectivas para olhar pelo retrovisor temas femininas que foram fortemente pautados nos anos 1980 e 1990, como a descoberta do ponto G, ao direito ao gozo, à masturbação, à busca da felicidade no homem e a solidão da viuvez.

Esse deslocamento das contemporaneidades dos temas tratados nesses dois primeiros fragmentos é um tanto frustrante pelo potencial do que poderia vir dessas duas operárias do teatro brasiliense nas suas experiências como atrizes e arte-educadora (Lucélia cumpre um importante e crucial papel na cidade).

Nesses dois primeiros quadros, que trazem empatia com a plateia por conta do humor, a narrativa abre mão de discursos urgentes como aborto, estupro, feminicidio, assédio sexual, estratégias de machismo (como a interrupção e desqualificação do discurso feminino), sexismo, misoginia, assédio moral, defasagem salarial e domínio dos homens nos processos de criação teatral na cidade onde habitam.

Do jeito que está estruturada, não nascem de “Copo de Leite” o soco do confronto, o atrito e tensão entre as atrizes serem mulheres negras, viverem de teatro num Distrito Federal, como espelho do pais, masculino e excludente.   

A montagem ganha força política nos quadros seguintes, como a mulher que, para fugir do assédio, fotografa a própria vagina, e, o touro fálico que está a postos para o cumprir a barbaridade do estupro, ambos protagonizados por Gabriela Correa.

Lucélia Freire encanta quando torna sua experiência de amamentação em relato emocionante. Impossível não encher os olhos com lágrimas, mesmo quando se gostaria de ter saído do teatro com o sangue na retina, àquele que toma conta da luta feminista das ruas.

 

*Sérgio Maggio é mestre em crítica teatral pela UnB e diretor-dramaturgo do Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada

 

Publicado em 24 de agosto de 2018