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[CRÍTICA] [ÉDIPO REI – O REI DOS BOBOS]

Foto: Nityama Macrini

Sérgio Maggio*

Durante pouco mais de duas horas, num canto discreto de uma praça do Recanto das Emas, testemunhei, em corpo-pulsante-vivo, uma das montagens de rua mais intrigantes, em minha assídua jornada de espectador. De alguma forma, insuflei meu peito de pertencimento. Ali, diante de “Édipo Rei, O Rei dos Bobos”, estavam algumas gerações do teatro brasiliense a encenar uma releitura arriscada e contagiante da tragédia das tragédias, “Édipo Rei, de Sófocles”.

No tempo-sensível em que fiquei diante da encenação, senti o frescor com que o grupo se apropriou de um clássico-chave do teatro ocidental, sem se curvar aos seus cânones. Fez esse exercício de criação com uma ética intocável. Sim, porque contra a ideia matriz de Denis Camargo, o de rir da obra-prima, há um infeliz legado. Milhares de sátiras baratas e de mau gosto foram erguidas a partir das tragédias gregas. A montagem “Édipo Rei, O Rei do Tolos” escapa inteligentemente dessa armadilha. E esse detalhe a põe no campo da arte.

Há uma aula, não no sentido didático, de como encontrar chaves de comicidades dentro de uma estrutura narrativa, que foi cautelosamente erguida por Sófocles para promover o horror e a piedade no espectador. Dênis Camargo, mentor do projeto dentro do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UnB, encara esse desafio a partir das linhas de força dessa dramaturgia. Aqui, vale destacar o trabalho de orientação pedagógica e artística do professor Marcos Motta, dramaturgo e uma das sumidades em tragédia grega no Brasil, que sempre defendeu a urgência de se revisitar os gregos com um olhar do aqui e agora.

“Édipo Rei, O Rei dos Bobos” é antes de tudo a teatralização da síntese da tragédia de Sófocles: o ódio, motor de toda a narrativa. Nesse sentido, a peça explode potente e atual diante dos olhos dos espectadores imersos num país, que perigosamente tem flertado com o fascismo (atenção para o horror das pesquisas eleitorais).

Em duas horas de encenação, vi a bílis do ódio da ultradireita brasileira, que defende a pena de morte, o porte de armas e outras atrocidades, ser materializada sobre a grama. Impossível não se conectar ao estado bélico das redes sociais e da campanha presidencial, no qual o desejo pelo sangue derramado ascende-se nefasto sobre uma cultura de paz e o estado democrático.

“Foi golpe, sim”, grita o tirânico e carismático Creonte, vivido pelo excepcional Hugo Leonardo, estabelecendo elos que estavam conjugados desde os primeiros instantes da montagem, quando o coro entra e nos conta, em boca-miúda, o motivo de tanta miséria na vida.  Sem recorrer a tantos panfletos, a montagem se faz política minuto a minuto, numa carpintaria estética que passeia por arquétipos da arte da palhaçaria, como o bufão, o bobo, o branco e augusto, o arlequim e o clown.

Na construção cênica da montagem, faz-se necessário destacar o trabalho de Hugo Leonardo, como um dos mais pungentes e difíceis de ser executados. Com a trajetória ligada à comédia e aos estudos de clown, o ator consegue criar um Creonte simultaneamente onírico e repugnante, numa construção corporal singular. Ele se desloca dentro de um conjunto de atuações marcantes e absolutamente hilárias como as de Lupe Leal (Tiresias) e Jocasta (a hilária Simone Marcelo).

Dono de todos os méritos (o de pensar, de pesquisar e de dirigir), o mentor Dênis Camargo carrega ainda a difícil missão de corporificar Édipo Rei. A faz com intensidade. Talvez, precisasse trazer mais respiros à energia explosiva da personagem (a personagem fica muito tempo numa mesma faixa de sentimento). Quando se desloca em partituras corporais/vocais, põe a sua personagem em estado mais humano.

Apontamentos críticos:

  1. A narrativa tem algumas chaves repetidas, como o excesso de “incorporação” de entidades espirituais para o encaminhamento das ações. Possa ser que aí resida pontos de enxugamento da trama, que não chega a incomodar em seu tempo estabelecido, mas que afeta o ritmo das cenas, saturando, por exemplo, a aparição de alguns personagens (como a triunfal chegada de Tiresias e a tomada de consciência de Jocasta).
  2. Algumas gags também perdem a força ao ser levada à exaustão, como o grito estridente de atriz do coro ao ouvir a palavra “esfinge”.
  3. Fundamental e hilário na trama, o coro, às vezes, é esquecido na cena. Espera-se dele que se respire o todo inteiro em que esteja à vista. A atuação corporal como coro também oscila entre os ótimos momentos em que coreografa canções e os inertes em que testemunha a trama.
  4. É importante destacar o trabalho artístico dos figurinos e adereços de cena. O primeiro de Andréa Patzsch e Denis Camargo. O último de Dênis.
  5. Tecnicamente, a falta de microfones para os vocais da banda (talvez, também do coro) provoca perdas dramatúrgicas que precisam ser repensadas para as próximas sessões. A narração inicial de André Araújo, por exemplo, é engolida pela massa sonora dos instrumentos, por exemplo.
  6. De alguma maneira, os cantos de Hugo Leonardo ganhariam outra dimensão se fossem amplificados e não o levariam a perda de voz na cena. Hugo tem que gritar para sua voz se sobrepor ao instrumental.  

Aliás, a presença da música ao vivo em cena e a execução das paródias de canções da axé music em si merecem um destaque de importância crucial desse teatro de rua de raiz, que merece uma estrada longa. Afinal, o ódio materializado pelo teatro de “Édipo Rei – O Rei dos Bobos” é monstruoso e desconcertante. Correr dele foi o sentimento que ficou em mim.   

* Sérgio Maggio é mestre em crítica teatral pela UnB e diretor-dramaturgo do Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada

Publicado em 24 de agosto de 2018