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[CRÍTICA] [ENCERRAMENTO DO AMOR]

Foto: Junior Aragão

Um pedaço de crítica morta

Brasília, 31 de agosto de 2018.

Ada, João, Taís e Diego,

Queria eu poder queimar a palma da minha mão aos poucos, sobre a chama de uma vela, enquanto filmo o recorte desta imagem, como se o congelamento desta dor que me arderia fosse possível minimamente de doer em vocês. E que isso fosse o esgarçamento mais próximo da crítica que preciso enviar agora. E que vocês acompanhassem lentamente a violência deste texto audiovisual carbonizando cada fresta viva dos caminhos que a história da minha pele já traçou.  Ou quem sabe se essa mesma mão rasgasse-me boca adentro para colher as cordas que vibram meu corpo travestido de voz, em seguida colocasse o órgão num vidrinho e enviasse a vocês, seria possível desdizer-me em texto escrito para que o impacto desse pedaço de crítica morta, há pouco viva, ferisse o âmago vocês.

Levantem a cabeça que essa crítica é pra doer como performance do que vocês são em cena! E o que é o amor senão a radicalidade de uma entrega mútua que carrega consigo interseções de bonança e dor? E nós, enquanto seres amantes no mundo, somos desprevenidos para encarar o fim. Ensinaram errado. Ensinam errado. Talvez pela fragilidade que temos em encarar realidades, conhecemos o ódio a partir do contato direto com ele, sem qualquer aviso prévio que possa nos fortalecer – o que cega não é o amor, mas a maneira como nos ensinam sobre ele. Daí vocês nos escancaram em “Encerramento do amor”, apresentado durante o Cena Contemporânea 2018, um tempo dilatado que percorre três setores de áreas isoladas: a pompa discursiva de João, o número de sapateado de Taís [que rasga absurdamente um fluxo de vida para anestesiar as feridas expostas] e a crueza argumentativa da réplica de Ada.

A verborragia de mais de duas horas de espetáculo que vocês nos trazem me invadiu estranhamente pós-dramática, ainda que seja textocêntrica na tradução da premiada obra francesa “Clôture de l”Amour”, de Pascal Rambert, que veio ao mundo gritando a força do fim durante o Festival de Avignon, em 2011. Uma força que vocês nos trazem contra a correnteza do que tem sido alguns recortes do teatro contemporâneo. Essa memória vocês não me arrancam, nem o gozo de João secando sobre a barriga de Ada, nem meu cérebro estourando como uma melancia que cai no tablado após horas de uma deleitosa tortura. Vocês  Ada, João, Taís e Diego, em vez darem rota de fuga e negarem o texto como tantas encenações da nossa geração, preferem mantê-lo refém de uma encenação compacta e direta, onde as palavras são como corpos vivos, são imagens, são radicais a ponto de versarem com o teatro de Ricardo Guilherme, feito no Ceará – que protagoniza o trabalho de ator e de atriz em relação aos outros elementos da cena. Como isso me atravessa pós-dramático se é ele que justamente esfacela a noção de drama e as hierarquias ocidentais que herdamos?

Eis que vocês construíram uma poética que, ao mesmo tempo em que muitas vezes é olhada como defasada, é também pulsante enquanto uma obra que dá nós e traz conflitos e crises para as caixinhas e definições da própria linguagem. Talvez estejamos diante de um marco possível nesse meu pequeno olhar da cena brasiliense durante os cinco anos em que vivo como novo candango – não à toa esse texto se complementa ao desenho-crítica adiante. É que as palavras nem sempre dão conta de tudo, vocês sabem. Em All About Love – New Visions (2010), bell hooks discorre sobre as diversas possibilidades de entendimento acerca do amor. São reflexões que desmistificam a noção de amor romântico, normalmente associado também à ideia de posse e poder. Para ela, “amor e abuso não podem coexistir”. O amor, apesar de sua complexidade em interseções de afetos, não é uma condição cega, mas uma escolha de respeito mútuo entre os sujeitos, como um lugar de justiça social capaz de gerar uma potência transformadora. É o que Ada nos ensina ao desbancar o discurso do macho. Se essa potência não está mais sendo possível, é sinal de que ele já encerrou.

Levanto a cabeça – abro a porta – e vou embora.

Danilo.

Danilo Castro é ator, graduado em Artes Cênicas (IFCE); jornalista, graduado em Comunicação (UFC), mestre em Artes cênicas (UnB) e autor do blog de críticas (www.odanilocastro.blogspot.com).

 

Publicado em 3 de setembro de 2018