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[CRÍTICA] [ÍCARO] As asas biodramáticas de Luciano Mallmann

Foto: Thiago Sabino

Brasília, 25 de agosto de 2018.

Luciano e Liane,

Esta é uma carta aberta a todos nós, após assistirmos ao espetáculo gaúcho Ícaro (RS) encenado ontem no Teatro Sesc Gama, durante o Cena Contemporânea 2018. É um desejo de diálogo com Luciano Mallmann, que empresta as dores de sua própria vida para a cena; com Liane Venturella, que assina a direção, mas é também uma abertura para repensarmos nossos privilégios num mundo feito para as pessoas que não possuem deficiência. Em cima de uma cadeira de rodas, o ator traz à tona histórias suas e de outros cadeirantes que retratam os abalos à saúde mental e física de quem vive as violências simbólicas de um mundo cheio de negações.

A mitologia grega conta que Ícaro precisou construir asas artificiais com cera de mel de abelhas e penas para fugir de um labirinto que ele mesmo construiu, mas até então não conseguia mais sair. Cuidadosamente, pena por pena foi colada até que o rapaz alçasse voo. Porém, ele esqueceu que não poderia voar perto do sol para que a cera não derretesse. Então Ícaro caiu nas águas do mar Egeu e se afogou. Em 2004, você, Luciano, acidentou-se durante uma acrobacia no tecido circense, teve uma lesão medular e ficou tetraplégico. Essa trajetória até aqui tem muito a nos ensinar.

23,9% da população no Brasil possui alguma deficiência de nascença ou adquirida, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). As pautas da acessibilidade e inclusão, apesar de já fazerem parte da nossa legislação, ainda são um desafio constante para o poder público e para nós, que pouco olhamos com empatia para essas causas. No Congresso Nacional, temos apenas uma pessoa com deficiência dentre os deputados: Mara Gabrilli, também tetraplégica, a primeira pessoa com deficiência a ocupar esse espaço de poder na história do país.

O Biodrama, termo alcunhado pela argentina Viviane Tellas, explora a autobiografia cênica como território para criação. Traumas e dores emergem como um material possível que mescla realidade e ficção. Espetáculos como Mi vida después, de Lola Árias (Argentina) e Festa de Separação: um documentário cênico, de Janaína Leite (SP), são alguns exemplos que se destacaram nessa linha já tão presente em linguagens como literatura, música e cinema. Talvez, a imposição da tradição dramatúrgica de encenarmos a obra de um autor terceiro nos afastasse da possibilidade de sermos protagonistas de nossas próprias tramas cênicas.

É impossível olhar para você, Luciano, e não lembrar de uma vez em que dialoguei com minha mãe num momento da minha vida em que eu andava bastante triste e disse a ela que achava que eu estava com depressão. Ela, com suas mãos fluentes em Língua Brasileira de Sinais (Libras), retrucou: “Meu filho, eu passei a vida toda sem ouvir e sou feliz”. Aquilo foi um divisor de águas pra mim diante dos privilégios que possuo por não ter uma deficiência. Ser filho de pais surdos me coloca hoje num lugar de “biocrítico”, trazendo os afetos que me percorreram durante e depois de sua encenação a ponto dos meus olhos derramarem água e o rosto ficar doído.

E, como a crítica que venho praticando se propõe à análise com alteridade no intuito político de ver as obras e os artistas alçarem voos ainda maiores que o do mitológico Ícaro, trago aqui dois pontos para que revisitem como sugestão: a estratégia da sonoplastia, lenta e triste sob sua voz em praticamente todas as cenas, Luciano e Liana, é um recurso catártico recorrente que objetiva a comoção. Que isso não seja uma estratégia geradora de dependência ao seu discurso de desmistificação da vida das pessoas cadeirantes.

O outro ponto é o delicado relato sobre a venda do serviço de suicídio assistido na Suíça. O Brasil é o 8º país no mundo onde mais se cometem suicídios, de acordo com dados do Centro de Valorização da Vida (CVV). No país, a cada 45 minutos, uma pessoa morre ao tirar a própria vida. Nas minhas andanças por eventos ligados à saúde mental, uma das indicações dos especialistas é que as obras artísticas que toquem no tema sugiram ao final (ou durante) o atendimento do CVV, por meio do número 141 ou 188, que acolhe com sigilo, 24 horas, as pessoas que pensam em cometer o ato.

Desde 2006, o Ministério da Saúde possui um conjunto de Diretrizes Nacionais de Prevenção do Suicídio, que orienta a sociedade como um todo a lidar com a questão na tentativa de reduzir os índices que têm sido alarmantes no nosso país. A sugestão aqui não é no intuito egoísta de barrar de forma moralista a autonomia dos sujeitos, mas de tentar prevenir como uma saída possível em meio a essa questão de saúde pública.

Obrigado pela experiência,

Danilo.

*Danilo Castro é ator, graduado em Artes Cênicas (IFCE); jornalista, graduado em Comunicação (UFC) e mestre em Artes cênicas (UnB).

 

Publicado em 26 de agosto de 2018