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[CRÍTICA] [INSTABILIDADE PERPÉTUA] Transitar pelos dias entre a descoberta e o olhar de menino

Foto: Rômulo Juracy

Vivemos em trânsito, se não fisicamente, dentro dos próprios corpos que ocupam um espaço também em constante mudança e instabilidade. Para sobreviver aos dias, creio eu, o que nos sustenta é o olhar duvidoso, questionador e instigante que levamos da infância. É o que desponta como questionamento e reflexão em Instabilidade Perpétua, primeiro solo teatral da carioca Soraya Ravenle. No palco, uma única atriz, figurino cotidiano, cenário simples, tal e qual os bastidores de um teatro. Um corpo performático e em trânsito, um corpo de mulher, uma figura que fala de mudança, poesia, narrativas sociais e pequenas grandes descobertas. É essa a escolha para abrir os trabalhos teatrais do Cena Contemporânea 2018.

Um festival que pergunta “de que lado você está?” dá o tom de sua 19ª edição pela voz reflexiva de uma contemporaneidade que se ajusta às constantes mudanças. A esperança pode viver nas transições. A cena é montada para que toda a atenção esteja nas palavras, nas proposições filosóficas e pequenas historietas poéticas que surgem para nos propor diálogo. Para que a arte se não para permitir a partilha de novas ideias? Soraya sustenta o amplo teatro em um solo criado com ares intimistas. Inspirado em livro homônimo do escritor Juliano Garcia Passanha, a peça nos leva aos instantes raros e repletos de descobertas da infância. Sem grandes mudanças de ritmo, deixo-me levar pela riqueza do texto e me permito imergir como na leitura de um livro. No palco, creio ver um corpo que se propõe à ideia de liberdade.

“Manter no rosto do adulto o olhar da criança”. Nesse instante, me transporto. Quero voltar ao primeiro dia em que vi o mar. A respiração farta e ofegante dos meninos. Uma total entrega, quase enlouquecida, ao próprio corpo. Até que nos engulam e, abismados, podemos inciar o processo de manter os pés enrijecidos ao chão. Mas, afinal, como é possível uma criança sem gesto? Enquanto infância, ocupamos o posto de recém-chegados em um mundo cada vez mais técnico. É preciso descobrir outras formas de nascimento além da biológica. Com delicadeza no gesto e serenidade no ritmo, Ravenle nos propõe um olhar atento para o entendimento de nossos próprios universos e como os transformamos na vida em sociedade.

Uma mistura de teatro, música e performance se desenvolve sem sobressaltos para instigar o pensamento através da conquista do corpo. No teatro, cria-se um exercício contínuo de escuta atenta. Cantora, Soraya mescla o solo rico em texto com um espaço musical intimista e muito pessoal. Entra em cena como mulher que quer se propor, sem grandes devaneios, a múltiplas possibilidades e transita com facilidade entre o canto, a performance, a repetição, a dúvida e a palavra. Gosto imensamente de me deixar levar pelas palavras, que aparecem no palco dançando entre a filosofia e a poesia das pequenas histórias.

 

Quero ser JP, caminhando entre as frases enquanto invento batalhas de consoantes e vogais para entender melhor a métrica das coisas. “Talvez eu não exista”. Com olhos bem abertos e o peito afobado pela experiência, desenvolvia-se, em pequenos espaços possíveis, o menino que ansiava pelo fogo da linguagem em seu corpo atravessado pelo mistério das coisas. Experimento o espetáculo enquanto leitura e, em diálogo com o autor, penso no reconhecimento da instabilidade como ponto vital para a experiência humana.

Ao final, distancia-se a personagem e prevalece a atriz. Ravenle abre com um público um pequeno papo fora das cortinas e mostra a entrega crua e sincera para pensar nas inconstâncias e improvisos do tempo. Vale lembrar que a montagem é resultado de um processo criativo colaborativo, com a participação das diretoras Daniela Visco, Georgette Fadel, Julia Bernat e Stella Rabello. Creio que o solo torna-se ainda mais potente em espaços intimistas, com diálogo, olhos e gestos mais próximos ao espectador. Sinto falta de um embate mais próximo, uma conexão corporal. Ainda assim, distante, consigo saborear com ternura e reflexão as palavras. Um mergulho nas incertezas internas, um tanto mundanas e um tanto abismais.

Isabella de Andrade.

* Isabella de Andrade é escritora, atriz e jornalista, graduada em Comunicação Social (UnB) e Artes Cênicas (UnB). Publicou o livro Veracidade (2015) e participou da antologia poética Casa do Desejo – Literaturas que desejamos, lançada na Flip em 2018. Idealizadora do projeto oCiclorama (www.ociclorama.com)

 

Publicado em 22 de agosto de 2018