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[CRÍTICA] [LO ÚNICO QUE NECESITA UNA GRAN ACTRIZ, ES UNA GRAN OBRA Y LAS GANAS DE TRIUNFAR]

Foto: Junior Aragão

Sérgio Maggio*

Uma fábula sobre o mistério que cerca 12 princesas cujos sapatos amanhecem destroçados em seu quarto. É assim, numa sútil narração de história, que as duas atrizes Diana Magallón Garcia e Mari Carmen Ruiz Benjumeda despedem-se das personagens Claire e Solange, diante de público que lotou a Sala Adolfo Celi, do Teatro Goldoni.

Diana ouve, Mari conta. A voz dela é tem a qualidade do sussurro. Elas quase cochilam à meia luz de um abajur chinês, uma amparando o corpo da outra num alinhamento solidário entre as duas. Dolorida e emocionante, a imagem é um respiro proposto pelo diretor Damián Cervantes à plateia que testemunhou uma avalanche de sentimentos em cena.

Diante do exercício intenso de teatro, ficamos à flor da pele. Ao sermos voyeurs dos embates entre Claire versus Solange; Diana versus Mari, a sensação é de abandono. Estamos mergulhados todos numa sala espremida pelas arquibancadas, acentuando a natureza claustrofóbica, como sugere a obra “As Criadas”, de Jean Genet, matriz desse espetáculo.

Duas atrizes avassaladoras, Diana e Mari Carmen nos conduzem numa montanha-russa de sentimentos. Do aterrorizante ao poético, percorremos um trajeto inventivo da adaptação de uma das obras seminais de Genet. O jorro de ódio desferido contra o sistema opressor, personificado na dramaturgia pela Madame, abre os primeiros instantes. As intérpretes, que recebem o público paradas, uma olhando para outra, quebram repentinamente o espaço como se desferissem socos e pontapés com as palavras.

Não há necessidade alguma de legenda. A velocidade catártica dos textos se acentua em corpos quase que em chamas. Diana tem as ações que circundam um pia onde lava objetos, enquanto Mari rasga o espaço com movimentos no seu corpo obeso e extremamente político. A sensação é de estado de choque. Até que, de um minuto para o outro, Diana mergulha a cabeça num balde de água, borbulha palavras, como se encerrasse o primeiro round de uma luta.

A obra de Genet está vivíssima nessa primeira cena. Sabemos que ele escreveu com extremo ódio esse texto em uma das suas prisões. Uma espécie de vingança ao sistema que o destroçava. Há nesse primeiro tempo a teatralização desse sentimento profundo. Imediatamente, o jogo se inverte e as atrizes quebram a dramaturgia ao comentarem uma a performance da outra, numa narrativa inteligentíssima, que começa a deixar claro à plateia a estratégia de adaptação do coletivo Vaca 35 Teatro en Grupo.

Viramos sem perceber cúmplices da Madame. Estamos rindo do que mina e destrói essas mulheres. Damián Cervantes aproveita-se do jogo de espelhamentos proposto por Genet e rapidamente o que era sororidade entre as atrizes vira um cruel duelo de competição.  Madame que não aparece fisicamente nessa adaptação é o cruel machismo estruturado, arquitetado pelo patriarcado para colocar as mulheres no ringue de lutas e extinguir suas forças de luta.

Tudo fica mais claro quando Diana frita delicadamente um ovo com cebolas picadas para ela e Mari. E desse carinho se desemboca em mais um round de dor e de dilaceramento. “Lo Único Que Necesita” é um soco no machismo, no sexismo, na misoginia, desferido por duas atrizes que se colocam em carne e viva em cena.

Destruídas, as atrizes acabam dando banho em outra, numa bacia enorme. A cena dolorosamente poética certamente ficará para sempre em minha memória de espectador. Sem esse amparo feminino, não há como elas prosseguirem para contar a fabula das 12 princesas que amanhecem com os sapatos destruídos. Aliás, o desfecho dessa história traz em si toda a crueldade ao qual Genet lutou.  

“Lo Único Que Necesita” tem um subtítulo seminal que guardei para o final dessa crítica: “Una Gran Actriz, es una Gran Obra y Las Ganas de Triunfar”. É a síntese da obra-prima do teatro mexicano.   

Sérgio Maggio é mestre em crítica teatral pela UnB e diretor-dramaturgo do Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada

Publicado em 3 de setembro de 2018