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[CRÍTICA] [RAMAL 340]

Foto: Júnior Aragão

 

Brasília, 23 de agosto de 2018.

Por mais forte e pulsante que seja a potência criativa, a realidade supera a ficção. Ramal 340 se propõe a falar de mudança, seis histórias diferentes que se cruzam e confirmam o inesperado dos dias. Em um único instante, a mudança completa. Antes que o elenco pudesse dar início ao espetáculo, uma das atrizes, emocionada, chama a atenção do público e, em um instante sem personagem, nos conta: “Aquele é o lugar da Jezebel, nossa diretora. Ao longo da peça ela conta uma história. Mas hoje a Jezebel não veio, ele teve que ficar em casa depois da sua primeira sessão de quimioterapia”.

Assim, o fator da mudança repentina, a transformação completa e sem tempo de ação, que permeia todo o espetáculo, coloca-se prontamente em embate com a realidade. A diretora se faz presente, ao vivo, através de microfones posicionados no palco e acompanha o elenco de perto, assim como nas outras temporadas. Aos olhos de quem os encontra pela primeira vez, a história de Jezebel de Carli se mistura com as narrativas propostas em cena.

Sem seguir uma forma linear o grupo Errática leva ao público um pouco de suas próprias inquietações. Em um ritmo frenético, guerras, despedidas, perdas, mortes e renascimento. O jovem elenco coloca à prova o incômodo coletivo frente à instabilidade violenta do mundo. O bombardeio constante de imagens e violências, escancarado em nosso próprio cotidiano, mostra-se sem pudores no palco e coloca o dedo na ferida das narrativas diárias que vivemos para escapar do caos.

Tenho receio quanto à exposição da violência em diversos momentos. Agressão e estupro no palco, cenas reais de violência de guerra ao fundo. Eu, aqui como espectadora, tento entender  o quanto de questionamento levantamos ao levarmos a ferida aberta para o palco e o quanto caminhamos próximos do fato de nos juntarmos ao enorme montante que reforça essa mesma violência diariamente. Ramal 340 se propõe a um pensamento, uma pergunta coletiva que se espalha em diferentes situações.

Um personagem nos lembra a razão do caos proposto em cena: Agora, no mundo, existem pelo menos vinte guerras acontecendo. Em lugares diferentes do mundo, pessoas estão matando umas as outras. São pelo menos 40 lados e eu não sei qual é o nosso”.

A peça é resultado de três anos de pesquisa do grupo, que buscou compartilhar com o público a inquietação coletiva de homens e mulheres que convivem com a velocidade, a mudança e a sensação de falta de pertencimento no mundo. As narrativas acontecem simultaneamente, na cena e fora dela, e se atravessam. A dramaturgia original de Francisco Gick mostra pessoas conectadas pela incompreensão sobre sua própria experiência no mundo.

Um ponto forte da montagem é a cenografia, que se desdobra em diferentes tempos e espaços para abrigar o fluxo constante de histórias e personagens. Uma grande estrutura fixa feita de palets mostra-se maleável ao modificar a própria utilidade. Portas que se fecham, caminhos que se cruzam, dias chuvosos e a imensidão do mar. O grupo se desdobra com velocidade para criar pontos específicos em cena que tratem de ambientalizar o espectador. Gosto de como a estrutura cria possibilidades em diferentes níveis, em cima, embaixo, por dentro, no meio encharcado e nas bordas.

A energia do grupo se expande para trabalhar o texto com força e rapidez. Sinto falta de algumas transições mais vagarosas no tempo, um diálogo dito, em algum instante, com a serenidade de quem compreende as grandes transformações. Ainda assim, percebo que forma energética do grupo se comunica bem e encaixa-se perfeitamente com a ebulição das coisas nas histórias que querem contar.

Ao fim, Jezebel despede-se dos textos lidos durante a peça para agradecer, com o elenco, diretamente ao público. Novamente, a realidade trata de encerrar o tempo de espetáculo com ainda mais emoção. De maneira inesperada, uma nova narrativa se desenvolve entre as cenas planejadas. Jezebel esteve presente, com honras, em Brasília.

A resolução inesperada para manter a diretora a vivo deu certo, mostrando o caminhar contínuo das grandes mudanças. Um vai e vem sem ensaios. O cotidiano é uma imensa união de pequenos instantes de caos e é um alívio saber resolvê-los em paz. O fluxo permanece.

Isabella de Andrade.

* Isabella de Andrade é escritora, atriz e jornalista, graduada em Comunicação Social (UnB) e Artes Cênicas (UnB). Publicou o livro Veracidade (2015) e participou da antologia poética Casa do Desejo – Literaturas que desejamos, lançada na Flip em 2018. Idealizadora do projeto oCiclorama (www.ociclorama.com)

Publicado em 23 de agosto de 2018