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[CRÍTICA] [TIJUANA]

Foto: Junior Aragão

Sérgio Maggio*

Para quem viu o espetáculo “El Rumor del Incêndio”, do grupo Lagartijas Tiradas Al Sol, a chegada para assistir à montagem “Tijuana”, no Teatro Sesc Paulo Gracindo, no Gama, é movida por expectativas. Em 2012, no Espaço Cultural Renato Russo, uma plateia acompanhou de olhos vidrados um México revolucionário posto no palco a partir de uma dramaturgia de base de memória íntima, o legado de filhos de guerrilheiros.

Em “Tijuana, em que pese as premissas políticas comuns aos dois projetos, ocorre um movimento inverso. Em vez do fascínio entre palco e plateia, amplifica-se um distanciamento. Em parte tem que ver com o fato de o ator Gabino Rodrigues, o narrador dessa história, ser alheio ao tema vivido: o de viver com um salário mínimo.

Para pesquisar o projeto, Gambino se coloca como o “impostor” Santigo Ramirez, que assumiu uma identidade falsa para trabalhar por seis meses na fábrica Tijuana e viver numa comunidade operária.   

Enquanto em “El Rumor del Incêndio” éramos convidados a entrar na narrativa pelas memórias afetivas de Luísa Pardo, filha de revolucionária, em “Tijuana” precisamos compactuar com o olhar estrangeiro de Gabino Rodrigues. Assim, para nos aproximarmos do que conta Gabino, precisamos estabelecer pactos com que o ator viu e viveu. Aceitar as suas subjetividades. E essa tarefa requer do espectador uma dupla força: a de acompanhar a sua história e a de assimilar as suas idiossincrasias.

Nesse sentido, o ator, diretor e narrador (essa função faz toda a diferença no projeto) apresenta-se à plateia como esse olhar de pesquisador, quase antropólogo, quase repórter. Para dar conta de uma veracidade, afasta a plateia da capacidade imaginativa tão potente no trabalho anterior.

Agora, é preciso acompanhar o que Gambino viveu, suas subjetividades passam ser objetividades para um espectador já distanciado pela proposta do teatro documentário, cercado de provas testemunhais. Há pouco espaço para o ator instigar a teatralidade. Ele precisa contar o que viveu e sentiu e essa tarefa parece ser uma grande demanda.

Sem espaço para o poético, “Tijuana” perde uma potência teatral, agravada ainda pelo fato de as diferenças sociais entre México e Brasil serem bem acentuadas. Há uma regionalidade em “Tijuana” que não se converte em aproximações por essa falta de afetividades. Em momentos pontuais, como a narração notável de um linchamento de um jovem acusado de estupro, esse elo se faz poderoso.

A dramaturgia árida perde-se pela falta de espaços de autocrítica em crises vividas pelo ator durante o experimento. Inicialmente, essa questão aparece perdida aqui e ali, como no momento em que ele observa de forma quase incontrolável a jovem nua na casa de família que habita, mas não expõe essa violação ética e machista de forma intensiva. O mesmo ocorre ao final, quando decide ir embora, diante da selvageria que presenciou na rua. A crise existencial apontada se desfaz rapidamente.

Sem essa capacidade íntima, “Tijuana” perde um vigor e se expõe como uma narrativa mais didática do que potencial. Saio do teatro levando a indignação de se viver com um salário mínimo no México, mas não consigo dimensionar como essa experiência atravessou o corpo de Gambino Rodriguez.    

Sérgio Maggio é mestre em crítica teatral pela UnB e diretor-dramaturgo do Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada

 

Publicado em 31 de agosto de 2018