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[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] DNA de DAN

{dois olhares juntos numa tacada só}

Escancarar contra a manutenção de mentiras

Brasília, 5 de setembro de 2017

Maikon K,

Experienciar a arte é para todos. E nós, apreciadores, somos uma diversidade imensurável de olhares, leituras, camadas e mais camadas. Camadas desde o DNA até a Via Láctea. Camadas que contêm e são contidas. Camadas que protegem e que revelam. Camadas para além do que é visto. É indizível. DNA-cromossomo-célula-órgão-sistema-corpo (osso-músculo-pele)-roupa-Kinesfera*-outros-espaço-proximidades-visibilidades horizontalidades-paisagens-ruas-cidades-países-continentes-planetas-galáxias-universo.

Imaginações para te desvendar, te encontrar. Há um público disciplinado, que foi te assistir, que está imerso em apreciações de obras como o seu DNA de DAN, apresentado ontem na frente do Museu Nacional, dentro da programação do Cena Contemporânea 2017. Há também um público transeunte, que estava passando ali e se deparou com sua obra. Como reverbera sua ação naqueles que não estavam preparados para o ritual? Já parou pra pensar? As provocações que você propõe, de fato, atingem esse público? Sua performance está além da notícia inusitada de um homem nu numa bolha no meio da rua?

Performar é gerar uma ruptura política no cotidiano, abrir uma fresta de desvio para a poesia, gerar crise para levar à reflexão, como diria a performer carioca Eleonora Fabião. E você, Maikon K, ao entrar nu numa bolha plástica criada por Fernando Rosenbaum, pintar-se de uma segunda pele desenvolvida por Faetusa Tezelli e ficar durante quatro horas em pé, até secar a substância, em seguida comer os restos da própria “placenta”, num transe, como um mamífero que acaba de parir, é, no mínimo, curioso aos olhos desavisados. Mas só a curiosidade pelo inusitado pode não ser suficiente para o sentido de suas provocações. Ou quem sabe estamos exigindo muito de tudo isso e, ao mesmo tempo, subestimando o público.

No Museu Nacional da República, a exposição Não Matarás, que trazia obras sobre a ditadura militar, dizia na entrada: “Em período de crise, esteja com os artistas”. A frase do crítico literário Mário Pedrosa nos mostra que a arte, muitas vezes, antecipa questões que a sociedade ainda não conseguiu discutir ou não se sensibilizou para tal. E você recentemente passou pelo constrangimento de ter sido bruscamente impedido de performar seu DNA de DAN por causa da truculência da polícia, que performa sua hipocrisia, ou quem sabe sua mediocridade, ou ainda sua fragilidade e despreparo, ou, em palavras mais sensíveis, seu analfabetismo poético em nome da “ordem” ou pela simples manutenção de seu suposto poder.

Isso fez com que seu ato, Maikon, mesmo com autorização do Museu e dentro na Mostra Sesc Palco Giratório 2017, fosse considerado “atentado ao pudor”. O erótico e o pornográfico está na cabeça de quem te vê? Ou de fato está na sua performance? Ou em nenhum lugar? Ou nos filtros midiáticos e ideológicos que nos englobam como proteção e nos expõem tão violentamente com o rompimento das nossas camadas de controle?

Estar nu é natural. Estar vestido é social, comportamental. E liberdade de expressão é direito previsto em lei. Bem como atentado ao pudor está no código penal. Quais são os limites do que é certo ou errado nos nossos marcos legais, nas fisiologias artísticas e políticas dos nossos corpos? Serão sempre olhares e disputa de poderes, de leituras, de interpretações, de encontros, de confrontos e de afrontas. Mas o fato é que o Cena, ao te convidar para o festival, se propõe a resistir contra o conservadorismo e ao enrijecimento que a arte e a sociedade vem se autodenunciando a cada dia.

E tem sido uma repressão mais perversa, legitimada por um congresso e um executivo que evocam o regime militar, endossado por boa parte de uma população em estado de alienação, inadequação, com urgências de ordem prática e de sobrevivência, e sem noção de pertencimento (sem memória, ignorante, burguesa) ou mesmo, quem sabe, ciente dos princípios básicos dos Direitos Humanos que norteiam nossa Constituição Cidadã de 1988, mas, ainda assim: uma sociedade cruel. Estamos em performance, sempre, Maikon. Uns para escancarar verdades. Outros pela manutenção de mentiras. E nós dois para te encontrar e juntos nos provocarmos.

Com carinho,

Danilo e Leo**.

*Kinesfera é a esfera que delimita o limite natural do espaço pessoal, no entorno do corpo do ser movente

**Danilo Castro é ator, jornalista e CRÍTICO em Artes Cênicas. Escreve, entre outros, em blog próprio (http://odanilocastro.blogspot.com.br)

**Leonardo Shamah é performer, pesquisador, diretor e provocador.

 

Foto: Humberto Araújo
Publicado em 19 de setembro de 2017