Notícias

[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] O EVANGELHO SEGUNDO JESUS, RAINHA DO CÉU

Foto: Humberto Araújo
Foto: Humberto Araújo

 

{um olhar}

Quem é essa que sai andando pelas mesmas escadas do público? O altar posto, água e poucos elementos. O vazio no palco pede um corpo e, da plateia, ela vem. De Cristo a Superstar, é difícil conceber que nova carne pode ter o herói-protagonista da mitologia católica. Já foi tantos. Das páscoas e vias sacras aos bebês que recheiam as manjedouras das casas onde o Natal é gordo e bem-servido. Sua partida e seu culto sempre renovados, nutrindo a espera do seu retorno. Sim, é de saudade do herói que o cristianismo se nutre. O mito ganha a silhueta esguia, a roupagem elegante e quando anda, cria barulhos com seu salto. Não é ele. É ela.Veio para parodiar o rito, passar batom nos lábios de quem narra a verdade, deixar que o  Queer (o estrangeiro das sexualidades, aquele que encarceram os desejos) pegue a Palavra para si. Reescrever, reinterpretar. Do suco que amarga ódio, expor as falhas de tradução e extrair o amor. Jesus de salto, veio para celebrar sua missa. Essa é a premissa do encontro, essa é a motivação do rito. O corpo-mulher veio vingar-se num ato solene de amor.Ela está no meio de nós.

O texto de Jo Clifford vem trazer uma Jesus desmistificada, revisora da história, corretora da má-fé que envenenou seus ensinamentos. Esse é o jogo: o corpo mais excluído do cânone da fé vem para narrar sua versão. Vem para reinscrever o profano como sagrado. Uma Jesus das esquinas não seria bem recebida em igreja alguma.Uma Jesus que parece íntima  de Jean Genet, comadre de Plínio Marcos. Ela é digna do chão mais acolhedor, o chão de um palco de teatro. Uma Jesus sem entrada gloriosa, ressignificando a grandeza ao discursar olhando nos olhos, comentando a moral e a hipocrisia, uma Jesus que não está em quadros ou eternizações mas que se expõe ao risco do corpo a corpo, que circula na multidão com liberdade, que celebra sua existência mundana, sua configuração e sua figura. Com as palavras, essa Jesus quer reescrever o imaginário que legitimou o aniquilamento, a tortura e a sumária exclusão do seu corpo. O mártir do tempo é a travesti. O Leão é Leoa, Deus é Deusa, Jesus é uma ela. Mas ao contrário do que o medo ou ódio dos convertidos pode especular, não é pelos caminhos paródicos ou a ironização da fé que essa Jesus se fará ouvir. Nem a imposição de trombetas de revelação e nem espelhando o ódio com que seu corpo é rechaçado no mundo. As narrativas em fluxo, vão chegando como histórias familiares para quem teve plantada a cruz na cabeça, mas os gestos de reescrita dão sabor inédito ao que se conta. Desfechos de acolhimento, homilias que agregam todo o afeto em falta nos templos que excomungam, reviravoltas onde a identidade travesti é sucesso, é Glória e é poder.

A luz permanece sobre a plateia acesa durante muito tempo e isso permite entrever que cargas emotivas essas releituras, essas sub-versões sutis das parábolas, por permitir o ingresso dos mundos queer no lugar legítimo de humanidade , acessam. Lágrimas, cabeças em sinal afirmativo, é comovente o alcance e a visível necessidade de toda uma comunidade de vidas sedentas por essas versões. Parábolas onde elas não são monstros, mas heroínas e protagonistas. A potência e os momentos de originalidade do texto sustentam a curiosidade pelas palavras. Mas me parece importante perguntar se a mescla do tom solene de missa-palestra com um tímido investimento no vocabulário das monas ( palavras que surgem como alívios cômicos mais do que marcas espontâneas de pertença) é o caminho mais potente para essa Jesus sagradamente profana. Parece que a atriz oscila entre um dizer-de-missa narrativo (e às vezes recitado) com breves e cômicas inserções das expressões do mundo da pista e do aquér. Sem muito investimento em frisar imagens específicas, os momentos-bíblia e os momentos-mundanos são marcadamente diferentes, como se esse acolhimento de um discurso pelo outro ( que me parece ser a esperança da peça) tivesse algo de utópico e irreconciliável. O tom muitas vezes neutro, permite que o público selecione as passagens e imagens no texto e sublinhe como preferir, mas às vezes a palavra chega sem agenciamento, sem que os desejos ou ironias ( que tornariam mais mundana e provocativa essa Jesus) escapem na voz.

Há um senso de comunhão muito bonito, generoso e solidário na reinvenção das orações conhecidas e uma oratória de esperança e otimismo permeia a peça toda. Porém, esses dois tons que não se misturam com a santificada promiscuidade acabam deixando algo de trágico no ar. Primeiro, a convicção de que naquele espaço, laços foram fortalecidos e algum empoderamento foi conquistado. Mas a medida que se percebe que o espetáculo vai findar, o senso de realidade ressurge quando essa Jesus se converte em fábula de consolo e perdão para corpos que sabem que, finda a missa, serão devolvidos a um mundo de riscos que gargalha a respeito dessa fantasia. Ao ressignificar os ritos, essa Jesus reclama a divinização e dignidade dos corpos trans, travestis, Queer e gueis. Mas os dois tons (da palestra de parábolas e os rompantes do universo travesti) segregados entre si, deixam escapar ainda que não há solidariedade possível entre ambos. Para acessar um público, um palco e a escuta dos presentes, essa Jesus travesti, por ainda prender-se aos referenciais bíblicos, acaba me contando que o direito da releitura ainda custa caro. Custa a assimilação, quando a proporção de falas solenes supera um dizer-travesti, quando a ousadia ainda precisa pedir licença para acessar algum ouvido e obter algum crédito. Essa Jesus para ser acreditada por nós, ainda precisa vir revestida de mansidão e sossegar aspectos da sua subjetividade. Ainda precisa ser cautelosa nesse seu existir, bem-vestida  e elegante como pede a norma, ainda tem o bíblico como estrutura e referência da sua fala. Não é menor a ousadia e nem fraqueza do espetáculo optar por essa Jesus, necessária e urgente, discurso que sustenta corpo, repleta de vontades de conciliação. Apenas me leva a refletir os caminhos ainda tortos da tolerância, em que o direito às narrativas é conquistado com o suor da assimilação. Pacífica, essa Jesus empodera, converte e em algumas passagens cativa seu público. Mas ainda parece distante a promessa de um livre acesso ao reino dos Céus, por mais rainha que essa Jesus seja.

 Yuri Fidelis, integrante do grupo de pesquisa Jovens Curadores

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Publicado em 29 de agosto de 2017