[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] O EVANGELHO SEGUNDO JESUS, RAINHA DO CÉU
{um olhar}
Quem é essa que sai andando pelas mesmas escadas do público? O altar posto, água e poucos elementos. O vazio no palco pede um corpo e, da plateia, ela vem. De Cristo a Superstar, é difícil conceber que nova carne pode ter o herói-protagonista da mitologia católica. Já foi tantos. Das páscoas e vias sacras aos bebês que recheiam as manjedouras das casas onde o Natal é gordo e bem-servido. Sua partida e seu culto sempre renovados, nutrindo a espera do seu retorno. Sim, é de saudade do herói que o cristianismo se nutre. O mito ganha a silhueta esguia, a roupagem elegante e quando anda, cria barulhos com seu salto. Não é ele. É ela.Veio para parodiar o rito, passar batom nos lábios de quem narra a verdade, deixar que o Queer (o estrangeiro das sexualidades, aquele que encarceram os desejos) pegue a Palavra para si. Reescrever, reinterpretar. Do suco que amarga ódio, expor as falhas de tradução e extrair o amor. Jesus de salto, veio para celebrar sua missa. Essa é a premissa do encontro, essa é a motivação do rito. O corpo-mulher veio vingar-se num ato solene de amor.Ela está no meio de nós.
O texto de Jo Clifford vem trazer uma Jesus desmistificada, revisora da história, corretora da má-fé que envenenou seus ensinamentos. Esse é o jogo: o corpo mais excluído do cânone da fé vem para narrar sua versão. Vem para reinscrever o profano como sagrado. Uma Jesus das esquinas não seria bem recebida em igreja alguma.Uma Jesus que parece íntima de Jean Genet, comadre de Plínio Marcos. Ela é digna do chão mais acolhedor, o chão de um palco de teatro. Uma Jesus sem entrada gloriosa, ressignificando a grandeza ao discursar olhando nos olhos, comentando a moral e a hipocrisia, uma Jesus que não está em quadros ou eternizações mas que se expõe ao risco do corpo a corpo, que circula na multidão com liberdade, que celebra sua existência mundana, sua configuração e sua figura. Com as palavras, essa Jesus quer reescrever o imaginário que legitimou o aniquilamento, a tortura e a sumária exclusão do seu corpo. O mártir do tempo é a travesti. O Leão é Leoa, Deus é Deusa, Jesus é uma ela. Mas ao contrário do que o medo ou ódio dos convertidos pode especular, não é pelos caminhos paródicos ou a ironização da fé que essa Jesus se fará ouvir. Nem a imposição de trombetas de revelação e nem espelhando o ódio com que seu corpo é rechaçado no mundo. As narrativas em fluxo, vão chegando como histórias familiares para quem teve plantada a cruz na cabeça, mas os gestos de reescrita dão sabor inédito ao que se conta. Desfechos de acolhimento, homilias que agregam todo o afeto em falta nos templos que excomungam, reviravoltas onde a identidade travesti é sucesso, é Glória e é poder.
A luz permanece sobre a plateia acesa durante muito tempo e isso permite entrever que cargas emotivas essas releituras, essas sub-versões sutis das parábolas, por permitir o ingresso dos mundos queer no lugar legítimo de humanidade , acessam. Lágrimas, cabeças em sinal afirmativo, é comovente o alcance e a visível necessidade de toda uma comunidade de vidas sedentas por essas versões. Parábolas onde elas não são monstros, mas heroínas e protagonistas. A potência e os momentos de originalidade do texto sustentam a curiosidade pelas palavras. Mas me parece importante perguntar se a mescla do tom solene de missa-palestra com um tímido investimento no vocabulário das monas ( palavras que surgem como alívios cômicos mais do que marcas espontâneas de pertença) é o caminho mais potente para essa Jesus sagradamente profana. Parece que a atriz oscila entre um dizer-de-missa narrativo (e às vezes recitado) com breves e cômicas inserções das expressões do mundo da pista e do aquér. Sem muito investimento em frisar imagens específicas, os momentos-bíblia e os momentos-mundanos são marcadamente diferentes, como se esse acolhimento de um discurso pelo outro ( que me parece ser a esperança da peça) tivesse algo de utópico e irreconciliável. O tom muitas vezes neutro, permite que o público selecione as passagens e imagens no texto e sublinhe como preferir, mas às vezes a palavra chega sem agenciamento, sem que os desejos ou ironias ( que tornariam mais mundana e provocativa essa Jesus) escapem na voz.
Há um senso de comunhão muito bonito, generoso e solidário na reinvenção das orações conhecidas e uma oratória de esperança e otimismo permeia a peça toda. Porém, esses dois tons que não se misturam com a santificada promiscuidade acabam deixando algo de trágico no ar. Primeiro, a convicção de que naquele espaço, laços foram fortalecidos e algum empoderamento foi conquistado. Mas a medida que se percebe que o espetáculo vai findar, o senso de realidade ressurge quando essa Jesus se converte em fábula de consolo e perdão para corpos que sabem que, finda a missa, serão devolvidos a um mundo de riscos que gargalha a respeito dessa fantasia. Ao ressignificar os ritos, essa Jesus reclama a divinização e dignidade dos corpos trans, travestis, Queer e gueis. Mas os dois tons (da palestra de parábolas e os rompantes do universo travesti) segregados entre si, deixam escapar ainda que não há solidariedade possível entre ambos. Para acessar um público, um palco e a escuta dos presentes, essa Jesus travesti, por ainda prender-se aos referenciais bíblicos, acaba me contando que o direito da releitura ainda custa caro. Custa a assimilação, quando a proporção de falas solenes supera um dizer-travesti, quando a ousadia ainda precisa pedir licença para acessar algum ouvido e obter algum crédito. Essa Jesus para ser acreditada por nós, ainda precisa vir revestida de mansidão e sossegar aspectos da sua subjetividade. Ainda precisa ser cautelosa nesse seu existir, bem-vestida e elegante como pede a norma, ainda tem o bíblico como estrutura e referência da sua fala. Não é menor a ousadia e nem fraqueza do espetáculo optar por essa Jesus, necessária e urgente, discurso que sustenta corpo, repleta de vontades de conciliação. Apenas me leva a refletir os caminhos ainda tortos da tolerância, em que o direito às narrativas é conquistado com o suor da assimilação. Pacífica, essa Jesus empodera, converte e em algumas passagens cativa seu público. Mas ainda parece distante a promessa de um livre acesso ao reino dos Céus, por mais rainha que essa Jesus seja.
Yuri Fidelis, integrante do grupo de pesquisa Jovens Curadores