[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] BLACK OFF
{um olhar}
Não consegui rir em praticamente nenhum momento. Apesar de ironicamente Black Off ser gravemente importante para o nosso tempo em seu discurso sobre igualdades e diferenças raciais, cromáticas, ideológicas e conceituais. Ntando Cele é dona de um poder infindável. O poder de se transformar no que ela deseja. Não consegui parar de pensar por todo o espetáculo. Durante a primeira parte meu corpo pensava por caminhos racionais. O que ela dizia, fazia e produzia na condução dos acontecimentos me alcançava com uma violência indecifrável sobre tudo o que pensamos quando dividimos o mundo sob uma perspectiva binária de claro e escuro. De branco e preto. Tantos pensamentos ocorreram nas metáforas e ironias da performer sul-africana que a multiplicidade de profundidades e superfícies percorridas nas emoções se transformaram em quedas e choques absurdos quando tratamos de lançar um olhar sobre o outro exclusivamente com nossas referências, e nunca a partir da especificidade que o outro exige para ser visto.
Na segunda parte do espetáculo, meu corpo pensou por outros caminhos. Fluxo inconsciente, fruição sensível e imaginação lúdica. Era isso que a obra me solicitava para acessar nela. Bem diferente do olhar que lancei anteriormente, agora era o momento de me emocionar, de me envolver e não apenas buscar lógicas e perceber as camadas sarcásticas do primeiro momento. No começo Black Off te cutuca denunciando de si para si os racismos embutidos, a sectarização discreta e a seletividade de olhares que temos uns para com os outros. Em seguida, diz quem é e a que veio. Quando o tema é branco, a forma é obscura, não vai direto ao ponto, usa de voltas intelectuais para velar as ideias que estão ali a destruir vidas e valores éticos por interesses pessoais. Quando o tema é negro, a forma é lúcida, evidente, vai direto ao ponto e não se apoia em maneirismos para um discurso adequado. É literal e chega tão perto que a plateia pode e deve se retirar do espaço se estiver incomodada. E aqui adentramos num outro ponto que é o fato de este ser um espetáculo pós-dramático.
Uma grande maioria de nós, plateia, ainda está bem distante desse conceito e ainda vai ao teatro para acompanhar narrativas lineares, personagens “esclarecidos”, dramas psicológicos e roteiros que sejam compreensivos e de rápida absorção. Teatro é entretenimento, e também é Arte. Black Off nos convoca a falar dentro do Teatro daquilo falamos e vivemos na rua, no ônibus, nas escolas, nas igrejas, nos ambientes de trabalho. Black Off abandona qualquer tentativa de construção ficcional para entreter ou iludir. Contudo, cria atmosferas, desperta perguntas, provoca empatia e pode gerar um estranhamento, um “não gostei muito”. E sim, nós temos a liberdade pra isso. É disse que Ntando fala. Liberdade. E quando se tratar de ser livre eu só consigo rir se me sentir como tal.
Leonardo Shamah, perfomer, diretor e provocador
{um outro olhar}
Black Off: Como vocês no Brasil chamam as pessoas negras?
Brasília, 24 de agosto de 2017
Querida pessoa que me lê,
Você provavelmente não me conhece. Por isso, primeiro gostaria que você imaginasse honestamente como eu, um dos críticos do Cena Contemporânea 2017, sou fisicamente. Pense antes de continuar a ler. Pensou? Acredito que não foi a imagem de um homem negro que veio à sua cabeça. Pois bem. É também dessa violência simbólica e estrutural que Black Off, espetáculo sul-africano que abriu o festival ontem na Caixa Cultural, trata.
Se você é uma pessoa branca, a “post drama queen” Ntando Cele pode ter te constrangido. Você pode tê-la achado agressiva ao trazer os dolorosos dilemas das “white people problem” na figura de sua persona coach certificada Bianca White. Quando ela lança para o público – majoritariamente branco, afinal, teatro na Caixa Cultural ainda é prioritariamente das pessoas brancas – a pergunta: como vocês no Brasil chamam as pessoas negras? Um homem branco respondeu num tom de obviedade: “negros!”, como quem diz “ué?”. Ao fundo, um homem negro respondeu “MACACO!”.
Parece que muita gente branca tá fechando os olhos pra não enxergar aquilo que o Black Off escancara: seu racismo. Uma performer preta, pintada de branca, com lentes azuis, peruca loira, figurino comportado faz um belo stand up para que você reconheça os privilégios em ter nascido branco numa sociedade racista. E teve gente branca que saiu se sentindo ofendida – protegida pela ideia equivocada de “racismo reverso”. Ntando não ataca ninguém. Ntando nos dá uma resposta a tanta violência. Se a carapuça serviu, é o que tem pra hoje, baby. Imagine ter a saúde mental violada por crescer ouvindo ofensa racista, apanhar por causa de racismo, morrer por causa de racismo. O nosso lugar de revolta, nem sempre paciente e didático, também é um lugar legítimo.
Em Gêneses 9:1-29, Noé amaldiçoa o neto: “Maldito seja Canaã; servo dos servos seja aos seus irmãos”. Canaã é filho de Cão, que significaria, em hebraico, escuro ou queimado. Cão teria sido o responsável por povoar a África após o dilúvio. Esse motivo justificou a escravidão – os colonizadores estariam resguardados pela Bíblia Sagrada. Escravizar é sinônimo de lucro. A Emenda Constitucional 95/2016, que congela até 2036 os gastos com saúde e educação, é sinônimo de lucro. A Reforma Trabalhista é sinônimo de lucro. O lucro e a hegemonia eurocêntrica e cristã, seja em 1500, seja em 2017 no triste parlamento brasileiro, são perversos e racistas.
Pode o subalterno falar? (1985), questiona a indiana Spivak ao trazer os estereótipos que os hegemônicos constroem para nos retratar. Pode uma preta interdisciplinar grávida dirigir e atuar no próprio espetáculo e ainda fazer um show de rock rebolando a bunda dentro de um teatro em um dos maiores festivais de cênicas do país? Ntando Cele será um dia considerada uma grande artista contemporânea ou será sempre uma grande artista negra contemporânea? Serei eu um dia um grande crítico ou serei sempre o crítico que precisa afirmar-se negro em tudo que produz?
Precisamos descolonizar as artes e o conhecimento. Sair das senzalas que ainda nos acorrentam. Sair das casas grandes que ainda nos confortam. Como uma rainha pós-dramática, Ntando tem muito o que nos ensinar sobre as artes, sobre a vida. É um espetáculo em legítima defesa. É manifesto incômodo para muitos de vocês, brancos que andam ocupados demais com suas artes acadêmicas e complicadas. No fim, Ntando pisa num território que também é nosso, mas sempre nos disseram que não. Querida pessoa branca que me lê, racismo é também um problema seu.
Beijos escuros.
Danilo*.
*Danilo Castro é ator, pesquisador e crítico de teatro. Escreve, entre outros, em blog próprio (http://odanilocastro.blogspot.com.br)
{um último, mas nem por isso menos importante, terceiro olhar}
“Pele negra, máscaras brancas; tambores pretos, canções brancas; pensamentos negros, palavras brancas; presidente preto, drogas brancas.” – Trecho da música cantada no espetáculo inspirada na obra ‘Pele negra, máscaras brancas’ (1952) do filósofo Frantz Fanon.
Abordar o racismo não é um tema fácil, nunca foi e ninguém disse que seria. Pois, a artista sul-africana Ntdando Celle, diretora e atriz do espetáculo Black Off, abriu o Festival Cena Contemporânea com uma proposta artística sobre o preconceito racial que não trazia a menor preocupação em ser afável ou digesta. Ácida, a obra trouxe a multiplicidade de linguagens como o ‘stand-up’, instalações de vídeo, dança, música e performance construindo um clima na plateia predominante branca de desconforto e inquietação acerca de tópicos que, pra quem é negro, trata-se apenas do arroz e feijão de todo dia.
Na primeira parte do trabalho, com a pele pintada de branco, roupa branca e peruca loira, a atriz interpreta a personagem Bianca White, grande filantropa que viaja o mundo para salvar as almas negras. Eu, que sendo uma das raras figuras negras na plateia, fui convidada a subir ao palco para acessar a minha branquitude e ‘superar’ minha negritude interior, pude sentir a satisfação de Bianca White fazendo o melhor de seu trabalho: curar e fazer as pessoas felizes. E senti também o ridículo. O fantasma ridículo estereotipado do branco que acredita no seu poder especial e indiscutível de fazer o bem. É assim que, durante cerca de 50 minutos, assistimos Bianca pontuar os delírios reais da suposta superioridade branca regada a prosecco, ‘arte complicada’ [termo utilizado pela artista] e deboche enquanto deixa muito claro (“imagine um lugar feliz todo branco com unicórnios e nuvens brancas”) os discursos naturalizados que desacreditam e reduzem o povo negro a objeto de espetacularização.
Após o intervalo, a atriz retorna despida do alter-ego de Bianca e dessa vez, sem nenhuma máscara branca, aposta durante 10 minutos de cena na simples exibição de seu rosto negro pressionando bochechas, esticando lábios, encolhendo os olhos, abrindo a boca, entre outras manipulações que me assombram aos tempos de identificação de qualidade física dos corpos negros nos comércios de escravos. É, então, que neste segundo bloco da peça, agora vestida com uma roupa preta, provocante e sexy, a cantora junto com a sua banda desabafa por meio de canções críticas, raivosas e contundentes o cansaço do pensamento colonizador que o branco insiste em ter em relação ao povo negro.
Por fim, a cantora conclama o seu lugar de pessoa, uma simples pessoa, não representativa de um continente, mas dela mesma. Uma artista que é “negra, mas que não está ali pra ser negra”. Certamente, não foi fácil dormir com a fala de Ntdando: “Como devem ter visto, estou grávida. Nos primeiros anos de vida, ele será um bebê fofo. E depois, apenas negro.”. E, com certeza, menos ainda, é fácil sair da peça com a certeza de que não foi uma ficção. Bravo!
♪ “THANK YOU! I DON’T NEED YOUR HELP. THANK YOU, I FUCKED UP BY MYSELF. THANK YOU! YOU CAN’T IGNORE ME NOW! FUCK YOU! YOU’RE BORING ME NOW! GOOOO! HELP YOURSELF! WE DON’T NEED YOUR HELP! GO! HELP YOURSELF! WE DON’T NEED YOUR HELP!” –
Trecho de música cantada no espetáculo.
Jéssica Cardoso, integrante do grupo criativo e provocador Jovens Curadores