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[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] GUERRILHEIRAS

Foto: Rômulo Juracy
Foto: Rômulo Juracy

{um olhar}

Guerrilheiras ou Para a Terra Não Há Desaparecidos

O espetáculo dirigido por Georgette Fadel aborda a história de mulheres que lutaram na Guerrilha do Araguaia, no sul do Pará, contra o regime opressor da ditadura militar. As guerrilheiras foram assassinadas e seus corpos nunca encontrados. Sinto que esse espetáculo surja como prova de que suas vozes ainda ecoam e merecem ser honradas e mantidas vivas – principalmente na urgência da contemporaneidade, que anda tão próxima do conservadorismo e do passado.

Esse é meu olhar desvirginado sob Guerrilheiras. Assisti pela primeira vez no palco do Sesc Belenzinho, no início de 2016. Lá, eu, mulher paraense, fiquei tomada de susto, de medo, de honra e de coragem. Escrevo aqui sobre a experiência que tive no Teatro Plínio Marcos, mais de um ano depois da primeira vez, e sob as influências de um cenário temeroso.

Altamente imagético, o espetáculo tem momentos de plasticidade refinados, principalmente quando consegue se estabelecer o diálogo entre as projeções e as atrizes. O uso das imagens projetadas – algumas delas gravadas no Pará, infiro eu – beira o excesso, mas ainda é compensado com bons e simples acertos de iluminação. No chão de círculo vermelho, todas essas imagens estão embebidas num rio avermelhado, como um Rio Amazonas. A potência das imagens criadas em cena e a força contida no que é baseado no real, na historicidade, parecem estar deslocadas do ambiente e linguagem de atuação proposto pelas atrizes. Nem um, nem outro potencializam-se nessa alquimia, o que não implica que sejam incríveis (daquilo que não se pode crer), mas que talvez sua junção não favoreça a melhor apreensão das cenas como um todo. O suor e a chuva que banha e desgrenha, a umidade que escorre, o calor absurdo que faz a vida parecer miragem. Sinto falta dessas percepções adquiridas em campo exalando em cena, e ao invés disso, percebo uma assepsia, que distancia. Já as cenas em coro são preciosas. Mesmo sendo quase todas em silêncio, como se anda a espreita na mata fechada, elas gritam através de partituras corporais.

A dramaturgia fragmentada não possibilita tempo às atrizes para construir estados mais verticais, uma vez que as cenas são muito curtas e abruptamente interrompidas. Ainda assim, creio que o espetáculo cumpra um panorama genérico que investe na rememoração do sangue vivo que pulsante nas veias e não na densidade com que ele foi derramado.

Guerrilheiras abre uma ferida que não fecha, me deixa com mais perguntas que respostas. Mas antes e acima de tudo, reivindico sua necessidade de existir, tal qual nossa necessidade de debater as questões por ele levantadas.

Larissa Souza, integrante do grupo de pesquisa Jovens Curadores

 

{um outro olhar}

Guerrilheiras além do nosso rebanho

 Brasília, 1º de setembro de 2017

 Guerrilheiras,

Por que fazemos teatro? Por que resistimos quando tudo nos diz que não vale à pena? Há uma força motriz que nos instiga e resiste. É algo que não cabe nesta carta. Talvez abrir a mata com um facão, como se fosse o último dia possível num caminho rumo a um lugar de amor e progresso, sentindo pingar da testa a água que nos compõe, eu consiga dizer. Assistir As Guerrilheiras ou Para a Terra não há Desaparecidos, apresentado por vocês ontem, no Cena Contemporânea 2017, foi como dar um sacode num corpo gélido. Estamos aqui, vivos, quentes, numa incansável luta que pouco aparece.

O teatro-documentário que vocês nos apresentam, narrando com uma essência sintética e plástica que nos leva a uma teatralidade máxima, conta a história de mulheres que instigavam a revolução socialista no Campo. O movimento ficou conhecido como Guerrilha do Araguaia (1960-1970), no Pará, duramente combatido pelas forças armadas. A obra de vocês é um mergulho revigorante nessa força que se esconde em nossas apatias diante de um cenário político que nos deixa impotentes.

De fato, andamos sem memória. Precisamos das guerrilheiras revivendo na pele de vocês, nesse novo contexto. E o teatro tem sido o punhal de enfrentamento. Dos 22 países da América Latina, o Brasil foi o último a abolir a escravidão (1500-1888), o último a acabar com a ditadura militar (1964-1989) e, ainda que a Comissão da Verdade (2012) tenha sido implementada tardiamente para apurar os crimes e torturas cometidos no regime militar brasileiro, os torturadores continuam anistiados, diferente dos outros países latinos, onde os nomes dos criminosos vieram a público.

Por aqui, eles estão estampando nomes de ruas, escolas, avenidas, praças, prédios públicos. As Guerrilheiras é uma aula de história. Vocês nos ensinam que a luta é todos os dias. E porque essa aula envolve tanto? Porque há algo inexplicável que transborda do trabalho de vocês, “como una sensación de algo que te envuelve y te excede”, disse Beatriz Catani (2006), ao tratar da sua necessidade ideológica de um teatro real, engajado, que evidencia o período militar na Argentina. É por isso que fazemos teatro. Pela liberdade, pelo desejo de transformação, pelo amor!

Sim, estamos cansados. Mas a fadiga situacional não pode aniquilar nosso espaço sensível de produção artística, crítica e autocrítica. Então, como nos afetarmos de tudo isso para nos potencializarmos enquanto disseminadores da reflexão, em vez do ódio? Do embate lúcido, em vez de cruzar os braços ensimesmados em ideais irredutíveis? Da resistência das micropolíticas, em vez do cansaço? A resposta pode estar no trabalho de vocês, na dramaturgia de Grace Passô (MG), na direção de Georgette Fadel (SP), que se mesclam como água em esponja. Até desconfio que tenham sido compostas juntas.

O desafio e a provocação que lanço é: como falar além das nossas ovelhas? Como apresentar As Guerrilheiras fora da nossa bolha? A crise e o embate precisam acontecer para reverberar além de nós. Quem lê essa carta agora? Quem acessa minhas críticas no meu blog e no site do Cena também pega na minha mão e grita Fora Temer comigo. Quem lhes assiste também. Para muitos, não há desaparecidos políticos no Brasil. Nunca houve, nem há chacinas que perseguem e assassinam ativistas no Pará até hoje – como o professor e conselheiro municipal de saúde de Igarapé Açu, Paulo Henrique, morto no último domingo (27/08) por fiscalizar e denunciar desvio de verba do Sistema Único de Saúde (SUS) no município. A verdade às vezes vem do sentimento – não da razão. Como bater panela pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Vocês nos descontam as mentiras que nos ensinaram, mas esse feito precisa ser um ato além do nosso rebanho. Esse é nosso desafio, essa é nossa luta.

De punho esquerdo cerrado,

Danilo*

*Danilo Castro é ator, jornalista e crítico de artes cênicas. Escreve, entre outros, em blog próprio (http://odanilocastro.blogspot.com.br)

 

Publicado em 19 de setembro de 2017