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[CRÍTICA] [EU É OUTRO]

Foto: Nityama Macrini

Sérgio Maggio*

É preciso ter muita cautela para falar sobre o projeto “Eu é Outro: Ensaio sobre Fronteiras” inserido dentro da grade do Cena Contemporânea – Festival Internacional de Teatro. Esse zelo é pertinente porque se tratam de fronteiras conceituais: o que é uma obra no campo experimental a se realizar versus uma obra consolidada em suas premissas de criação.

“Eu é Outro: Ensaios sobre Fronteiras” está nesse primeiro campo, inacabada em exercício de apuro estético, sobretudo, nas teatralidades corporais. Se formos trilhar por esse caminho, as fragilidades expostas no palco do Teatro Sesc Paulo Gracindo se acentuam fortemente, já que o Cena Contemporânea demarca em si o campo do “bem realizado”, do que não se está mais a fazer, mas em provocar.

Essa contradição, porém, é enfrentada bravamente pelo Coato Coletivo (BA) em sua capacidade de emancipação dos corpos periféricos que se tornam protagonistas no palco: Negros, gordos e incomuns na cena nacional, em muito, sufocada pelo plástico e estético. Vejo verdades na sucessão de experimentos postos no palco (muitos verdes como exercícios ignitores da cena) outros potentes e provocadores como o sussurro poético de textos que chegam aos meus ouvidos.

Não vou aqui, portanto, apontar um relatório de erros e acertos da montagem porque seria desleal com a potência que esse processo cênico tem para esses jovens artistas e as suas plateias. Quero falar da força cênica de um todo, um conjunto, que vence as fragilidades pontuais. Da menina negra, MC, que surge ao final, ao microfone, a falar do extermínio da mulher negra e periférica no Brasil e na Bahia preta. E esse testemunho me vale como singular.

Saí do teatro com essa voz e essa imagem na cabeça, enfrentando minhas tendências burguesas de encontrar a felicidade no elaborado “trabalho de ator”. Segui a estrada compreendendo a feliz pertinência desses jovens estarem em cima do palco do teatro, um espaço simbólico, que como arquitetura, tornou-se excludente no Brasil. Da ousadia de o grupo buscar uma linguagem própria mesmo tropeçando a todo instante nela. E claro: do deslocamento que a presença dessa montagem provoca dentro de uma instituição de gosto estabelecido em festivais como o Cena Contemporânea.

Não cabe a mim dar as respostas às questões. Mas suscitá-las já cumpre o meu papel ético de diálogo com a tríade Cena-Coato-Espectador.

Ou acabamos com o conceito de “teatro de qualidade” ou vamos mandar de volta para os guetos experiências tão sanguíneas como a de “Eu é Outro: Ensaios Sobre Fronteiras”?

Em tempos de representatividades urgentes, talvez, os caminhos já tenham sidos apontados pela jovem MC negra ao microfone. A alteridade proposta pelo Coletivo Coato o faz protagonista da cena. Cabe-me apenas esse registro.

Sérgio Maggio é mestre em crítica teatral pela UnB e diretor-dramaturgo do Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada

 

Publicado em 31 de agosto de 2018