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[CRÍTICA] [LILI MARLENE – UM MUSICAL]

Foto: Humberto Araujo

O espaço da crítica tem me permitido um exercício diário de disponibilidade, atenção e escuta. Olhos e ouvidos bem abertos para receber novas experiências e me relacionar mesmo com o que me parece distante. Lili Marlene – Um Musical acerta no que se propõe.

Músicas originais, histórias fortes, um cenário muito bem pensado e uma relação enriquecedora com o audiovisual. Ainda assim, sinto falta de uma relação mais forte com o espectador, uma alternância de ritmos e canções que nos transportem a outros universos em um mergulho mais intenso.

O excesso de músicas parece prejudicar a dramaturgia, que se torna dispersa entre diferentes histórias contadas e a parte musical. Ainda assim, admiro a coragem do estilista Fause Haten, que se aventura no palco em uma experiência de reconhecimento e reconciliação com o próprio corpo.

Ao fim da peça, quando se desnuda dos personagens trabalhados simultaneamente ao longo da história, o artista encontra em um instante de maior emoção ao longo do espetáculo.

Despido das histórias contadas, Haten mostra seu corpo, quase neutro, ao público, e conta aquilo que pudemos acompanhar: a peça, é um tratado à própria liberdade de um homem que convive com as incertezas da própria pele. O musical, dirigido e estrelado pelo estilista, conta a vida de um ator transformista e relata diferentes possibilidades de agressão: ao corpo, à infância, ao afeto ou às ideias.

A companhia dos músicos é essencial. No palco, a pequena banda embala a trilha sonora dando o ritmo e o tom das cenas. As projeções de vídeo marcam como um dos pontos altos da peça. Através delas, é possível preencher o palco com personagens multiplicados em sua própria essência.

Haten experimenta bem com esse recurso e transita entre filmagens com ângulos mais tradicionais e focos experimentais com um celular segurando pelas próprias mãos. Em cena, o ator dá vida ao texto, ao figurino (que se modifica entre as cenas) e ao palco preenchido pelas próprias gravações.

Fause mostra a força e a tragédia das histórias interrompidas pela violência e o abuso. Temas delicados são trabalhos em cena e o ator se esforça para encarar de frente diferentes nuances das personagens que vive. Uma menina, um professor, uma artista, um pai, um único corpo em transição se prepara para receber cada fragmento de narrativa. Sinto falta de uma conexão mais forte entre cada fato narrado e uma transição mais sutil para as músicas apresentadas em inúmeros momentos ao espectador.

No final, sinto a emoção do espectador que acompanhou aquele pequeno espaço teatral cheio de transições em cena, encontrando-se, enfim, com a pele e a voz desnuda do ator. Gosto imensamente quando Haten se mostra assim, de maneira crua no palco, e gostaria que esse instante encontrasse um ponto de expansão maior em seu processo criativo.

Isabella de Andrade.

* Isabella de Andrade é escritora, atriz e jornalista, graduada em Comunicação Social (UnB) e Artes Cênicas (UnB). Publicou o livro Veracidade (2015) e participou da antologia poética Casa do Desejo – Literaturas que desejamos, lançada na Flip em 2018. Idealizadora do projeto oCiclorama (www.ociclorama.com)

 

Publicado em 26 de agosto de 2018