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[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] BARRO ROJO

Foto: Bruno Meyer
Foto: Bruno Meyer 

{um olhar}

Barro Rojo: entre tapas e afetos

Brasília, 24 de agosto de 2017

Javier Liñera,

Na revista cubana Tablas (2008), o pesquisador espanhol Oscar Conargo questiona: “Como saber quais as boas obras, que são mais bem interpretadas, o que vai entrar para a história, que história é. Quais são os critérios?”. Ontem, ao te assistir em Barro Rojo, no pequeno teatro do Sesc Garagem, durante o Cena Contemporânea 2017, pensei em discutir com você e com quem me lê agora sobre o risco do seu trabalho de ator e o risco do meu trabalho de crítico.

Com direção de Daniela Molina e Linda Wise, você nos conta a história de um homem torturado na Alemanha de Adolf Hitler (1889-1845) e na Espanha de Francisco Franco (1892-1975) simplesmente por ser gay. É um espetáculo em homenagem a todos aqueles que morreram vítimas da homofobia durante os períodos de recessão militar. E, ainda que décadas tenham se passado dessas realidades cruéis, no Brasil, ainda somos o país que mais mata por homofobia, de acordo com relatório do Grupo Gay da Bahia (2016).

Somos um país com um projeto de lei intitulado Estatuto da Família (PL 6583/2013), que tramita no Congresso, com adesão de uma maioria fanática cristã, para restringir os direitos civis de homossexuais, definindo apenas a união de homem e mulher como família. Por isso mesmo o seu espetáculo, Javier, nos é necessário. Te indico um trabalho brasileiro interessante, que faz um bom diálogo com o seu. Chama-se BR Trans (2013), de Silvero Pereira. O intérprete, também em tom documental, conta histórias que colheu de diversas travestis no percurso Ceará-Rio Grande do Sul, numa poética que se assemelha a sua, em alguns aspectos.

Estar em cena, definitivamente, é dar a cara a tapa. Fazer crítica também. E me questionei se não havia no seu trabalho uma celeridade rítmica e um não polimento das ações e marcações do palco que te atrapalham mais que te potencializam. Não que para performar seja necessariamente preciso codificar. Mas, na sua proposta, a descodificação me chegou como uma ausência de arremate e não como uma encenação livre e despojada. Se a sua energia não oscila durante a dramaturgia do seu trabalho de ator, a gente, do lado de cá do teatro, vai se desinteressando.

Em muitos momentos, nós já sabíamos o seu máximo, então nada de novo nos fisgava no seu trabalho como intérprete dessa trama instigante. E sobre os seus choros, quando não forem choros críveis, talvez seja preciso ainda mais cuidado na hora de simulá-los. Podem cair num aspecto fajuto. Conte-nos aquelas dores, apenas. As histórias são trágicas por si, são dolorosas por si. São suficientes para emocionar. Então volto ao pensamento de Oscar. Como saber quais as obras mais bem interpretadas? Você pode me questionar: como saber qual a boa crítica? Qual autoridade você tem para falar do meu trabalho de ator?

Crítica opiniosa é diferente de crítica com opinião. Aquela parte do gosto, esta parte da reflexão. E meu papel aqui é o de tentar sempre contribuir pra te potencializar ainda mais. Eis os nossos dilemas. Estamos em risco. Você na cena. Eu na escrita. Mas eu cá estou para afetar, nunca para tapear.

Com respeito,

Danilo*.

*Danilo Castro é ator, pesquisador e crítico de teatro. Escreve, entre outros, em blog próprio (http://odanilocastro.blogspot.com.br)

 

{um outro olhar}

Barro Rojo e seus caminhos

Homofobia e homossexualidade são pautas urgentes para um teatro que pretende provocar, sugerir, alertar e criar referências nos dias de hoje, onde o ódio contra pessoas que amam e fazem sexo com iguais, é visto, debatido e combatido como nunca antes.

Essa conversa está muito além de apenas amar e fazer sexo. Essa conversa está voltada, inclusive, para questões de direito à identidade e expressão dela, finanças, valores morais, mídia, relações familiares, mercado de trabalho, matrimônio, direitos e jurisdições, ideologias, filosofias, amizades e convivência social. Ou seja, ser homossexual é um modo de existência legítimo e precisamos enxergar isso como tal.

Um fator próprio que o teatro traz em si, pelo menos no Brasil, é um estreitamento entre as linguagens artísticas (principalmente as artes cênicas) e o que preconceituosamente se toma por “viadagem”, mas que aqui vem sedimentada amplamente como uma ferramenta de orgulho, de escracho e de política de afirmação. Afinal, o que há de ruim em curtir a “viadagem” ou em ser “viado”?

Na internet podemos encontrar a palavra viado, para além do usual xingamento, como uma redução de transviado e como um antigo pano listrado. Com a palavra “transviado” vem uma carga significativa de desencaminhado, que escolheu outro caminho por não ser pertencente ao caminho que se previa a este, ou esta. E é nessa estação, nesse caminho que chegamos a Barro Rojo. Como alguém que caminha sem destino evidente o espetáculo traz à cena muitas fragilidades no que tange a forma estética. Há na criação das cenas, na dramaturgia, na direção teatral uma intenção de diálogos que ainda não acontecem efetivamente com a/o espectadora. Há uma série de dúvidas que perambulam as trocas de figurinos tão bonitos e ideias ainda incipientes de cena. A obra não se propõe, com precisão, a estabelecer os códigos e estruturas que conduzem seu caminho, sua conversa com a plateia. Ora dramático que se mistura a algo documental e em seguida ao teatro político, para retornar ao memorial e se fragmentar num show que quase nos leva a cabarés etc, etc, etc.

Não há problemas em elaborar um teatro que passa por diversos estilos (caminhos) de teatro, todavia, a narrativa que realmente se aparenta querer abordar não acontece fundamentalmente. A sensação durante a exibição da obra é de que existem ideias divergentes que necessitam conviver juntas e que não se fundem para contar a história desse tio e desse sobrinho. Onde os caminhos do século passado e desse século se encontram na história de vida desses dois homens? Qual a importância desses caminhos se cruzarem para a vida de quem está aqui os conhecendo? É apenas uma memória do sobrinho que superestima a coincidência de ambos serem gays? Por que as escolhas no arremate das cenas são tão indefinidas e não criam trilhos de acesso com as/os espectadores? Enfim, restaram por aqui diversas perguntas sem resposta.

A retomar o segundo significado curioso da palavra “viado”, antigo pano listrado, podemos estabelecer algum vínculo com todas as sugestões de figurinos, que se encerram à função de apenas vestir-ilustrar e não vestir-costurar as tramas dessa viagem nas duas histórias. Como vias sem saída as peças de roupa se transformam em acúmulos que não contribuem na narração enquanto temporalidade, localização e circunstâncias emocionais. Menos ainda como paisagem visual que poderia ser erguida na cenografia para essa história esvaziada, nesse formato, de conteúdo de vocabulário para a cena. Politicamente é importante falar no Barro Rojo sujo com o sangue desses homens que amam outros homens, mas esteticamente incorre numa trivialidade descabida.

De estação à estação, a migração dessa viagem partiu da curiosidade, ao quase envolvimento, ao quase interesse, ao esforço em permanecer na sala a assistir, à frustração de não se sentir incluso na expectativa que se tinha a partir do proposto na primeira cena (não li o release anteriormente), ao desespero de acabar e de voltar para minha vida.

Então, Barro Rojo se mostra ainda em criação (mesmo se acreditando encerrada) visto que as indefinições, ou aparentes indefinições, não colaboram para aproximação da espectação e geram desgastes.

Vida longa ao espetáculo para que seus caminhos sejam tão fortes quanto seu nome e seu argumento. E que suas indefinições sejam uma escolha e não apenas um acaso.

Leonardo Shamah, perfomer, diretor e provocador

Publicado em 24 de agosto de 2017