[AS BÁRBARAS DO CENA E AS JOVENS HELIODORAS] TSUNAMI
{um olhar}
Tsunami: tragédia para refletir sobre drama e colaboração
Brasília, 26 de agosto de 2017
Jonathan,
O italiano Eugênio Barba fala sobre um Terceiro Teatro, que seria aquele onde os coletivos deixam suas heranças legitimadoras (teóricos do teatro no mundo) se diluírem para se tornarem “autônomos”, com descobertas e caminhos teóricos e práticos próprios. Resumindo, talvez ele esteja falando da consistência de se encontrar uma identidade a partir de uma metodologia surgida após um longo período de treinamento. Te escrevo depois de assistir o Tsunami, que se apresentou ontem no Cena Contemporânea 2017, no Sesc Garagem.
Há pouco mais de um mês, assisti o seu Caipora Quer Dormir (2017), recém-estreado na Funarte Brasília. Em ambos os trabalhos, creio que consigo enxergar a tal identidade da sua poética. Pontos que se evidenciam com potência nas obras e que, certamente, só existem porque seus processos devem ter ganhado cada vez mais corpo, língua e asas que te levam além dos territórios artísticos que foram legitimados antes de nós. As mulheres em solo. O cenário que surpreende como mágica a cada novo manuseio. A iluminação que desenha a imagem como uma pintura refinada ou quem sabe um cartoon. A atmosfera jocosa, brincante, infante.
Tsunami talvez seja mais de você do que você imagina, mas também muito daqueles que caminham contigo. Tsunami talvez seja até mais nosso, público, do que seu. Tsunami talvez seja muito dos jovens da escola Stella dos Cherubins, em Planaltina (DF), que participaram do seu processo criativo. E nessa onda pós-dramática, te vejo tão dramático e, ao mesmo tempo, tão contemporâneo que você consegue criar um espaço de coexistência entre o novo e a tradição. Sua dramaturgia segue a linha apresentação-problema-clímax-resolução. Em geral, somos treinados apreciar teatro somente dessa forma, com uma história que nos é contada, infelizmente. Teatro está bem além disso, sabemos.
Mas o seu drama é repleto de nuances e de complexidades que nos levam a várias atmosferas num lugar com signos tão fortes que é quase como se o drama fosse de igual peso diante dos outros elementos que compõem sua obra. Tudo vem com força, de uma vez, e sem tanta hierarquia entre dramaturgia, direção, cenografia, adereços, sonoplastia (Tomás Seferin), videomapping (Fernando Gutierrez), maquiagem (Roberto Dagô), performance (Ana Flávia Garcia). Rimos, choramos, temos compaixão, nojo, somos cúmplices da protagonista de Tsunami: uma mulher solitária que nos conta em gramelô* uma história de perdas em uma grande tragédia.
A sua história não seria a mesma se lhe faltasse qualquer um desses elementos, obviamente. Mas acho que seria ainda pior: a máquina não funcionaria. A equipe artística que trabalha com você, cada um na sua especificidade, é capaz de nivelar-se à potência do seu drama-direção. Que bom, senão poderíamos cair no risco de um trabalho hierarquizado na apresentação de seus elementos, como é comum em muitas direções que se dizem não-hierárquicas. Essa carta é para você, talvez porque nós, críticos e jornalistas, temos essa tendência de hipervalorizar autor e diretor. Mas, na verdade, essa carta é também para a turma que te acolhe nas suas ideias e cria com você. Eis o achado de estar em colaboração.
Um beijo, querido!
Danilo**
*gramelô é uma espécie de conversação improvisada sem o uso específico de uma língua. Um conjunto de sons livres emitidos pela intérprete vão compondo ideias e a comunicação com o público vai sendo estabelecida.
**Danilo Castro é ator, jornalista e pesquisador em artes cênicas. Escreve, entre outros, em blog próprio (http://odanilocastro.blogspot.com.br)
{um outro olhar}
Dizer em voz alta Tsunami faz a língua estalar. Essa é uma palavra de fora, estranha de nós. Um desafio de dizer. Não parece haver nada de brasileiro nela, não parece que nos comunica nada. Digo “tsu-nami”e não parece que isso fere o mundo. Só parece. Talvez seja sobre esse disfarce de que as dores do mundo se valem para existir, talvez seja sobre as carnes em que pousam essas dores, talvez seja sobre o tempo necessário para se aguentar estar na companhia delas, talvez seja sobre simplesmente dar tempo para que um outro (um não-eu) seja ouvido. Talvez essa atriz criadora (tão sozinha, tão acompanhada) seja como uma chuva e genial é deixar que ela chova sobre aquilo que resta (uma cama que tange com o peso, uma espécie de ventilador, uma maleta, sacolas de lixo, espelho, objetos pendurados na cama e na mulher, trapos vários, um cômodo de muitas gavetas, molho de chaves…um mundo alheio reunindo simplesmente aquilo que se conseguiu salvar). Talvez aceitar um Tsunami seja encarar aquilo que nos irmana, lembrar os poderes do ofício desse corpo que cativa gargalhadas, captura a atenção e conquista os silêncios.
A zona do talvez é aquela que o outro nos coloca quando estamos diante dele. É com esse jogo de travessia, de especular sentidos que a velha estrangeira, íntima do Tsunami, vai ficando íntima de nós. Vai furando a máscara do bicho para que se re-conheça uma pessoa. Vai criando frestas para acessarmos sua língua. O riso é um parceiro inestimável da dor da velha, do ofício da atriz, da nossa visita a esse canto de quinquilharias.
O esforço e imenso desejo de se fazer entender deixa escapar, no meio da chuva sonora da memória, alguns rastros do mundo que entendemos. É a entrega e a inteireza da atriz (Ana Flávia Garcia) que vai tornando familiar as gavetas, os guardados, que vai trazer a memória do que já esteve no espaço, que recorda em cada sobra um mundo varrido. Que vai dar vida e sentido para Ughi e Tenefera. Que humaniza o corpo, as práticas,, as palavras. A desgraçada é engraçada, faz rir muito com seus rompantes, encanta com sua capacidade de viver. Recupera conosco os motivos do riso e, então lembra. Cada pedaço lembra, cada nova coisa é gatilho da memória. Lembrar resgata. E dependendo do que se lembra, lembrar rasga.
Como nós somos tragados de fascínio por essa velha tão viva, vibrante e amparada pela nossa atenção, ela também se deixa carregar nas marés que cada objeto desvendado desencadeia. Tudo serve como mais um pedaço para a fome da imaginação. Generoso, Jonathan Andrade (o diretor criador) confia plenamente na carpintaria emocional de Ana Flávia e é aí, nessa plena confiança dos criadores entre si que parece se tecer o coração de tudo que o espetáculo conquista. Generosidade de partilha, apuro visual e, principalmente, respeito profundo ao tempo de instalação dos estados, reverência ao tempo necessário para que a respiração mude, a alma se altere, a nova temperatura chegue, o percurso do que se lembra atinja o corpo em que se vive. É precioso cada dizer, como é inestimável cada silêncio ( nunca imposto, sempre conquistado), até que a pausa dispare o desvendamento do que suporta aquele corpo. Até que as vontades da velha desvendando o seu espaço tão seu, até que olhar o público ache a borda, até que toda água que represa os mares da memória possa ser onda. Antes de transbordar, escorrer. As lembranças escorrem no corpo da atriz como se fossem parte do suor da cara. Jonathan, constrói com esmero o lugar onde essa velha reina sua delícia e miséria, as oportunidades para a atriz poder chover. Um espaço para a chuva atuar. E molha, e marola, e afoga, e rio e rimos, e vamos, juntos, derrubadas todas as barreiras entre nós, mergulhar… até o tsunami.
Yuri Fidelis, integrante do grupo de pesquisa Jovens Curadores
{um último, mas nem por isso, menos importante olhar}
Que mares te trazem aqui?
Essa é, talvez, a pergunta latente de Tsunami. Muitas histórias nos trazem ao presente. Poucas são representativas o suficiente de merecerem uma lembrança. Nós selecionamos bem o que nos é importante. Mas e se puxássemos o fio que está em nós e aponta os caminhos labirínticos do nosso passado? O que será que reencontraríamos? Que mares navegamos antes de estar aqui e agora? Que perdas trazemos? Podemos melhorar a pergunta: Que perdas nos trazem aqui? Que alegria nos acompanha agora e que pessoas ainda não existem em nossas vidas? Podemos crer que é dessa onda-avalanche que Jonathan Andrade e Ana Flávia Garcia falam quando criam esse trabalho.
Quando paramos diante de alguém que acabamos de conhecer podemos olhar nossos próprios pés e questionar que água é essa que a trouxe até mim? Que acaso acentuou os cabelos grisalhos ou a queda capilar? Tsunami afunda a mão em águas bem profundas ao abordar os sabores básicos de uma comidinha caseira que a gente sente tanta falta quando por alguma onda surpresa somos lançados no mundo com nossas inquietações, incertezas e imprecisões. E junto, a necessidade básica de um cotidiano de pequenas ações à frente. Tsunami tem poder para nos resgatar da fúria dos mares, mas ainda é um espetáculo recém nascido. Nos dá uns bons caldos, mas com o tempo pretende nos arremessar às profundezas de Poseidon e nos mostrar de cada ruga, pra quem já tem, a sua origem. Qual a casa natal daquele fio de cabelo branco? Onde ficaram nossos parentes partidos em nosso corpo? E os antigos amores, para onde vão, em nós, quando deixam de os ser? São tantas as paredes e cortinas a se desvendarem nessa navegada… A única evidência concreta que temos é aquela onda gigante que se aproxima devagar e leva uma vida inteira para se quebrar… às vezes ela se adianta e destrói tudo aquilo que acreditamos ter importância e nos leva à lida com resquícios, fragmentos, sobras, memórias, sonhos e devaneios. Tsunamis trazem uma revirada de valores. É urgente escutar quais novos valores se desenham em volta de nossas rotinas, que paisagem de praia avistamos de longe para ancorar e o que fazer dessas tormentas aquáticas que nos isolam no mar para sermos mais íntimos dele e enxergarmos que o outro também é a gente.
Ana Flávia tão boa como sempre e feito nunca, uma marzona cheia de grandes ondas. Jonathan, instrutor de mergulhos para grandes plateias.
Obs: o barulhinho de água corrente do Teatro Garagem colaborou muito para a imersão.
Leonardo Shamah, pesquisador, diretor e provocador.