Notícias

[CRÍTICA] [A BERGMAN AFFAIR] Bergman para mobilizar algo dentro e fora de nós

Foto: Rômulo Juracy

Brasília, 27 de agosto de 2018.

Selvagens,

Um dos mais aclamados dramaturgos e cineastas no mundo, o sueco Ingmar Bergman (1918-2007), é o mote que vocês, grupo francês The Wild Donkeys, utilizam para apresentar o espetáculo A Bergman Affair, que teve sua estreia mundial realizada no Teatro Sesc Garagem, durante o Festival Internacional de Teatro de Brasília – Cena Contemporânea 2018. Que honra para o Brasil abrir as portas para o teatro francês, que também existe fruto de luta e resistência diante de contextos tão perversos que várias partes do mundo andam sofrendo com a ascensão do fascismo – tanto que o festival nos questiona “De que lado você está?”.

Costumo recorrer ao teatrólogo argentino Jorge Dubatti para reafirmar que o papel do crítico é ser um filósofo do seu tempo, analisando as obras cênicas e relacionando-as com o agora. Sob as vestes do romance bergminiano “Confissões Privadas”, levado às telas do cinema em 1996, vocês contam o drama psicológico de Anna, uma mulher de quarenta anos que trai o marido com um jovem rapaz e se debruça sobre os dilemas internos diante do seu ato. Dito isto, não consegui apurar, ainda que eu exercesse um olhar empático e uma apreciação ativa, a grande questão que a obra de vocês traz para nós, público.

Talvez, o conflito interno de Anna, que carrega durante toda a obra a culpa cristã pela traição que cometeu, esteja descontextualizado com os novos tempos e demandas sociais contemporâneas. Isso não significa necessariamente uma reivindicação por um teatro “panfletário”, político ou engajado, mas uma provocação para que o trabalho de vocês não seja descolado dos nossos tempos. Então questiono: o que move vocês enquanto artistas que se debruçam sobre essa obra? O que vocês desejam, de fato, trazer como experiência ao público diante desta encenação? A força de uma mulher que segue seu desejo? Talvez.

O centenário de Bergman não pode ser o principal argumento para uma produção circular por festivais. Seria levar o teatro à sua própria falência diante da demanda de mercado que a data pode trazer. Ainda mais num contexto de ascensão do conservadorismo tanto no governo francês quanto no brasileiro, onde o Estado tem restringido direitos sociais. Não estou aqui depreciando a relevância do cineasta e dramaturgo para o mundo, tampouco a trajetória de vocês na árdua militância que é ser artista em tempos de ódio. Estou propondo uma crise para que vocês se debrucem sobre essas reflexões e consigam encontrar nas confissões privadas de Anna um lugar que nos atravesse, nos mobilize, nos arrebate, nos gere dúvidas, uma experiência que reverbere de forma intensa para além da redoma psicológica.

É preciso destacar o trabalho dos atores Olivia Corsini, Stephen Szekely, Gérard Hardy, Andrea Romano e Serge Nicolai, que com calma e leveza conduzem a narrativa num tom naturalista, vez por outra transpassado pelas epifanias da manipulação de seus corpos e de algumas cenas que carregam consigo uma força imagética. A exemplo do nado de Anna sobre as águas que refrescam o peso de sua consciência ou os corpos da protagonista e de seu amante, que se misturam transbordando um amor temeroso e lascivo.

Os princípios do Bunraku (fantoches japoneses) foram utilizados para a composição de movimentos corporais onde um ator manipula os demais em momentos precisos. Apesar do rompimento da calmaria que atrai nossos olhos por meio de gestos expandidos, a repetição dessas ações em diferentes personagens não nos traz nada novo, levando-nos a uma apreciação que pouco surpreende. A cenografia é genuína na sua simplicidade, porém se mostra completamente ausente de refinamento estético. Uma cama de solteiro, uma mesa, duas cadeiras, uma grade de apoio ao fundo. Tudo pareceu improvisado, como se fossem móveis da repartição onde o grupo se apresentou e não signos pensados estrategicamente para estarem ali da forma como são. Obviamente que essa pode ser uma escolha do coletivo, mas que pode nos levar à interpretação de “descuido”.

Essas são apenas algumas questões para fomentar o debate no intuito de fortalecê-los diante de todo o esforço e trajetória para a realização desta obra. Que possamos entender cada vez mais o teatro como um lugar potente convivência no intuito de movimentar, de forma feroz como o nome que vocês carregam no grupo, algo no mundo e em nós para gerar transformação.

Com respeito,

Danilo.

*Danilo Castro é ator, graduado em Artes Cênicas (IFCE); jornalista, graduado em Comunicação (UFC), mestre em Artes cênicas (UnB) e autor do blog de críticas (www.odanilocastro.blogspot.com).

 

Publicado em 28 de agosto de 2018